Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune
Descrição de chapéu
réveillon

Ano-Novo com sorte é inóspito, sem calcinha colorida e pular ondinha

Lembro quando recebemos minha Tia Célia e sua luz doirada no Réveillon pela primeira vez, o que deixou meus pais tensíssimos

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A ordem era formar um círculo, fechar os olhos e imaginar uma luz doirada —assim mesmo, em português castiço— percorrendo nossos corpos. Mas, burlando a vigilância de Tia Célia e abrindo os olhos para espiar, o que sentíamos era cãibra nas pernas e vontade de rir.

"Shhhh, foco na luz! Ou o ano vindouro será lôbrego e nefasto!"

 Na ilustração de Marcelo Martinez, fogos de artifício espocam no céu escuro. Uma pequena casa é iluminada por um facho de luz dourada, vinda de cima.
Ilustração para a coluna de Bia Braune publicada em 26 de dezembro de 2022 - Marcelo Martinez

Na "tioria", funcionava —pois assim Tia Célia falava "teoria". Viúva de um gramático, autor de "O Fator Psicológico na Evolução Sintática" e "Dicionário das Dificuldades da Língua Portuguesa", tinha um vocabulário escorreito. Isso e o diploma num curso de poder da mente que lhe conferia credenciais de sacerdotisa dos tesauros e demais emanações léxicas. "Homessa! A que horas passaremos à praia?"

Pela primeira vez a recebíamos num Réveillon, o que deixava meus pais tensíssimos. Por mais que Tia Célia fosse espiritualizada, razão em si do convite, acreditavam que qualquer mudança nos rituais do dia 31 poderia alterar o fluxo cósmico de nossa prosperidade.

Até Tio Vando, que anos antes se atrevera a fatiar um panetone na horizontal, foi obrigado a aposentar sua técnica. Reza a lenda que aquilo desequilibrara o universo, a ponto dos vizinhos terem se separado e do Fluminense ter caído para a terceira divisão.

Pródiga e gentil, mas sem intimidade com ninguém, Tia Célia distribuiu lembrancinhas trágicas. Um terço de madrepérola para Tia Zuma, comunista e ateia. Loção pós-barba para um sobrinho que vivia de covers do Raul Seixas. Vinho rosé para uma concunhada recém-saída da "rehab" e um Snoopy para mim, que já tinha quase idade para ser presa. Quando tirei o boneco da caixa, se esfarelou. "Ah, é porque tava guardado desde 1980, quando fui a Nova York."

Nisso, a campainha. Eram minhas primas mais velhas: todas de preto. "Boas festas!", berraram. "E um inóspito Ano-Novo", completou Tia Célia, abanando minha mãe. Já não havia como a luz doirada
nos redimir.

À meia-noite, papai pulou o triplo de ondinhas. Abraçados, fizemos um único pedido: que viesse o menos pior. Talvez se sentindo culpada, Tia Célia deitou a garrafa de rosé na oferenda alheia, sem dizer palavra (fácil ou difícil). O Snoopy alguém jogou no mar.

Resultado: aquele ano veio a ser o melhor de nossas vidas. Passei no vestibular, os vizinhos reataram como "trisal" e o Flu brilhou na segunda divisão. O único azar foi Tia Célia nunca mais ter voltado. Levou sua luz doirada para coruscar nos Réveillons de Salvador. Iemanjá e ela tinham muito a brindar.

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