Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune

Existe um bom motivo para folião não chamar bloco de 'bloquinho' em todo Carnaval

Não há como deixar décadas de folia e orgulho para trás

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"Bloquinho é o escambau. A gente era o Xuxu, porra!" Sempre que o assunto volta à baila, seu Modesto acende um cigarro no outro, dando baforadas de fúria. Não tem como deixar décadas de folia e orgulho para trás, que nem topo de carro alegórico preso em fio de alta tensão.

De minha parte, bem, houve um tempo em que eu não me recolhia ao ar-condicionado no talo. Estocando víveres e séries como quem foge do glitter que transforma a humanidade em zumbis do Carnaval.

Na ilustração de Marcelo Martinez, um homem rabugento, de terno, com seu guarda-chuva aberto, percebe que uma nuvem de glitter se aproxima, como uma tempestade
Ilustração de Marcelo Martinez para coluna de Bia Braune de 19 de fevereiro de 2023 - Marcelo Martinez

Se ainda estou aqui para contar essa história, é porque o Conselho Tutelar não enquadrou meus pais e não entregou minha guarda ao Milton Cunha. E porque um amigo achou reportagens comprovando que não vivi um delírio coletivo por inalação de lança-perfume Cashmere Bouquet.

Eu tinha dez anos. Era época risonha e franca, machista e homofóbica, quando o politicamente incorreto sambava na cara do Brasil. Em ordem decrescente de verba e glamour, as agremiações se dividiam em grupos: Especial, A, B, Z, Pobre, Muito Pobre, Paupérrimo e... Xuxu.

Destacado para desfilar em plena Sapucaí, era um bloco com a autoestima de uma Portela, mas desprovido de águia. Escasso de beija-flor. Sem equivalente possível à Viviane Araújo na bateria do Salgueiro, quem animava o coro de cuícas do Xuxu branco e vermelho era um homenzarrão de bigode e peruca, requebrando num figurino de odalisca dois números menor.

O grupo de passistas do encontro de jovens evoluía até sangrar nas sandálias de ir à missa, customizadas com lantejoula e cola quente. Alas reuniam vizinhos e conhecidos, tanto que identifiquei várias mães de amigos do colégio entre as baianas que rodopiavam suas apropriações culturais.

Ninguém deixava o "esquindô" morrer diante dos jurados, que do alto de suas cabines e incredulidades tudo julgavam. Nem mesmo os louros de cocar.

Única menor de idade desfilando sem papel do juizado, eu me lembro de testemunhar seu Modesto cantando o enredo a plenos pulmões, um "Marlborão" transformado em estandarte. Sovacos tão úmidos quanto seus olhos, emocionados pela harmonia daquela penúria. O coração feito um bumbo, atravessando a avenida com a alegria de um samba que parecia não ter hora para acabar.

Até que acabou, rebaixando o Xuxu a recortes amarelados de jornal. Tal como outros "xuxus", de outros carnavais. Na minha fantasia, todos renascem na purpurina de novos fevereiros, em blocos que surgem com nomes diferentes –mas sem a terminologia de "bloquinho".

Momo há de resguardar suas grandezas.

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