Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune

O santuário da peladice que eu simplesmente tinha de converter em lar

Era um anúncio de imóvel, mas com o puxadinho de uma história caliente da mulher da cobra

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Sou uma ricaça fictícia, de imaginação fértil. Todos os dias, antes dormir e apenas na minha cabeça, compro pelo menos um apartamento.

Funciona assim: à guisa de higiene mental, abro trocentas abas em sites de imóveis, fuxicando detalhes. Tem piso de porcelanato? Divisórias de dry-wall? Passo.

A portaria é art déco, possui teto com sanca e roseta, o chão é de parquet com tabeira? Os bitcoins do juízo começam a circular. Se o elevador do edifício for de porta pantográfica que decepa mão de morador incauto, aí não respondo por mim.

Colagem digital de Marcelo Martinez com fotos de Luz del Fuego em rosa vibrante, vermelho e preto.
Marcelo Martinez

Certa vez, um cafofo muito peculiar foi anunciado no meu próprio prédio. Chance de ouro para sair da virtualidade, sem alimentar corretores com falsas esperanças, pois um vizinho estava com a chave.

Ao cruzar a soleira, notei uma aura inexplicável de fascínio. Um je-ne-sais-quoi imobiliário, quiçá oriundo dos gritos, sussurros e babados fortes que aquelas paredes já deviam ter ouvido. Acabamentos de época fazendo da exígua metragem uma legítima cápsula do tempo. Retrato 3D da vida como ela era entre as décadas de 1930 e 1940.

"Ih, olhinho brilhou. Então dá uma espiada nos papéis. Vai que descobre alguma coisa..." Sim, até o vizinho sabia que eu estava ali para assuntar, não comprar. Contudo, o que eu mesma desconhecia é que por entre as letras miúdas da certidão de ônus reais estava a história da nossa mais existencialista e pelada musa.

Luz del Fuego, capixaba nascida em 1917, era a beneficiária original do muquifo, adquirido por seu amante do high society. Reconheci o nome dele porque há anos pesquisava a vida da vedete para um projeto com todos os elementos eletrizantes: machismo, naturismo, uma cobra chamada Castorina (que ela usava enroscada pelo corpo, em escandalosas performances como veio ao mundo) e seu brutal assassinato, aos 50 anos de idade.

Imagine você a lascívia, a devassidão, o atentado aos bons costumes que aquela garçonnière não representava. Um santuário da peladice que eu simplesmente tinha de converter em lar, doce lar. Nem que, para tal, fosse preciso raspar o FGTS, dar uma pedalada no orçamento do leitinho das crianças.

"Más notícias", suspirou o vizinho. "Ainda que fosse caô seu, outra pessoa já deu sinal." E assim, a subversiva morada da liberdade e do prazer femininos virou consultório de dentista. Porcelanato de cabo a rabo. Os tacos do parquet indo embora numa caçamba de lixo, junto com os resquícios do sublime suor de virilha da cobra Castorina. O apagar de uma Luz.

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