Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune
Descrição de chapéu

Toda família tem uma parenta incompreendida, que nunca casou

Tia Celina teve a vida escancarada involuntariamente ao deixar um apartamento com seus pertences

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Os adultos se esgoelavam por conta de uma santa barroca que há mais de 30 anos morava sobre um aparador, mas que por ora tinha sumido em meio àquele tanto de caixas.

Valia uma fortuna, segundo eles. Nada que se comparasse a um inestimável saco repleto de poeira, figurinhas e decalques que meus primos encontraram atrás de uma cômoda.

Caças ao tesouro exigem ambição. E quando foi preciso esvaziar o apartamento de tia Celina, duas estavam correndo em paralelo. Nós, porém, tínhamos mãos menores. Mais fadadas ao sucesso em vãos estreitos. Levávamos vantagem.

Morta há pouco tempo, tratava-se de nossa parenta mais original e incompreendida —toda família tem uma. Nunca se casou. Nenhum filho. Zelava por sua privacidade. Só que ao deixar apartamento e pertences para os sobrinhos, involuntariamente teve a vida inteira escancarada.

Na ilustração de Marcelo Martinez: uma flor seca com 5 pétalas rosas, entre as páginas de um velho livro aberto.
Ilustração publicada em 13 de março de 2023 - Marcelo Martinez

Lembro de abrir o guarda-roupa do quarto como se fosse um portal estranhamente familiar para o mundo de Nárnia. Peripécia infantil irresistível.

Lá de dentro, peguei um caftã que tia Celina devia ter comprado numa das várias viagens internacionais que fazia sozinha. Levaria pelo menos dez anos para me vestir bem.

Na pia do banheiro, o vidro de esmalte vermelho que até outro dia ela usava para fazer as unhas, enquanto elogiava as notas azuis do meu boletim.

Pendurados na parede, os pratos que havíamos pintado juntas, num domingo à tarde. "Cada uma retrata a própria cara. Mas tem que ser como a gente se vê, não como veem a gente". Desbotado pelo sol, ainda se enxergava um tracejado de coração.

Àquela altura, os maiores beneficiários do espólio brigavam por um anel de dedo mindinho com sei lá quantos quilates. "Quem pegou?! É o que parece um brigadeiro."

Antes de o papo se converter em juros e caderneta de poupança, sentei no chão da biblioteca para inventariar minhas conquistas. Saldo parcial: o caftã, o esmalte, dois broches de borboleta e uma gaiola de passarinho vazia, que tocava música.

No que apoiei para me levantar, um dicionário de capa amarela caiu da prateleira, aberto numa página. Espremida entre verbetes difíceis, a flor seca de um hábito comum aos nostálgicos. A favorita dela. "E sabe como se fala miosótis em alemão?" Até hoje consigo ouvir tia Celina perguntar, regando as plantas. "Vergissmeinnicht. Não-me-esqueças."

Sem qualquer hesitação, acrescentei o dicionário ao que me cabia de precioso na herança. Ao longe, uma falação indistinta. Algo sobre debêntures.

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