Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune

Foi como se dissessem 'Quietinha aí, quarentona', e era hora da mamotomia

A agulha da biópsia dava medo, e ninguém da sala de espera entendeu as gargalhadas que vinham lá de dentro

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Pela primeira vez eu estava usando um avental descartável de tamanho digno, diria até que bastante confortável, e que não deixava nenhuma fatia de bunda à mostra.

Bom presságio? Talvez, não fosse meu pessimismo patológico. Tivesse anticorpos para ser uma pessoa calma e razoável, que não "googla" dormência de madrugada achando que já se trata de derrame, talvez conseguisse deitar menos tensa naquela maca.

O problema é que termos como "fragmentos cilíndricos", "cisto complicado", "mamotomia" e "biópsia" há semanas pululavam de receituários e guias de exame, me estapeando a cara. Como se dissessem: "Quietinha aí, quarentona. Não é hora de positividade tóxica!".

A bitola da agulha também era de apavorar. "Muito grossa?". "Bastante", respondeu a médica, enquanto preparava o procedimento. "Mais do que aquelas de coletar sangue?". "Se puder, nem olha", tentou desconversar, dando instruções a duas auxiliares de enfermagem.

No cartum de Marcelo Martinez, um cavaleiro de armadura medieval olha apreensivo para a enorme seringa nas mãos da enfermeira que irá lhe aplicar uma injeção — ainda maior do que a grande lança que o cavaleiro empunha
Ilustração de Marcelo Martinez para coluna de Bia Braune - Folhapress

Suspeitas diagnósticas costumam testar não apenas nossa resiliência, mas a capacidade de nos mantermos autoimunes a um perrengue.

Chega uma hora em que o derrotismo dá espaço a uma certa normalização do cagaço. Uma esperança travestida de senso de humor existencial. "O que você faz da vida, meu bem?", indagou ternamente uma das auxiliares, segurando minha mão. E até agora só posso ser grata pela pergunta.

Profissão é sintoma. Um desejo de extrair histórias de tudo. Observa daqui, pergunta de lá, a inspiração pode surgir num simpósio de protéticos. Na farmácia, conversando com uma senhora que reclama de erisipela. Ou ali, fazendo minha própria anamnese com as profissionais presentes.

"Vocês gostam de séries médicas? Acham ‘Grey’s Anatomy’ muito xarope? E o Doutor House, hein? Por que nunca era lúpus?". A médica, então, fez silêncio. Um chumaço de algodão em riste. "Tuberculose". O quê? "Se o House fosse brasileiro, ia dizer que nunca é tuberculose!".

Pronto. O conversê contaminou geral. Enquanto um chip me era inserido na mama esquerda, descobri que clínicos cenográficos costumam usar o estetoscópio ao contrário e enfiar o bisturi pelo lado que não corta. "Mas sabe o maior dos absurdos? George Clooney em ‘Plantão Médico’!". "Ihhh, menina. Nunca ninguém deu sorte desse pegar esse boy ou esse turno...".

Da sala de espera, soube depois que ninguém entendeu as gargalhadas que vinham lá de dentro. "Muito obrigada pela melhor experiência horrível de todas", disse às três. Lacrimejando um pouco, mas fingindo que era de tanto rir.

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