Nas últimas semanas do ano letivo, meu filho começou a chegar em casa triste. Resmungando que os colegas saem para jogar futebol e trocar cartas de "Pokemón", enquanto ele passa a hora do recreio batalhando contra a angústia.
Como as notas estavam boas, fui falar com a professora. "Ele é ótimo. Matéria sempre em dia." Então se distrai na aula? Fica pensando na morte da bezerra? "É atento feito uma diminuta águia."
Então por que demora para copiar o quadro? "Deve ser a letra." Está enxergando mal? "Não, o problema é a letra dele. Coisa mais linda! Caprichada demais."
Simples assim. Sou mãe de um pequeno escriba. Aquele que faz redações sobre dragõesde-komodo como quem compõe manuscritos do mar Morto. Calígrafo otomano que volta com a lancheira intocada. Artífice mirim dos caracteres. Céus, a quem esse menino saiu?
Após o advento da imprensa, mas antes dos stickers e emojis, ainda existiam dois tipos de pessoas: as que pingavam o "I" e as que faziam uma meiga bolinha. Tempos quase imemoriais de pontas rombudas e cadernos de caligrafia.
Aliás, onde os meus foram parar? Sempre que uma folha sumia, a certeza era de ter ido forrar gaiola de passarinho. Pais e avós tinham a belíssima letra padrão, do tipo que encontramos em documentos históricos, cadernos de telefone repletos de gente já morta e cartas picantes que amarelam na gaveta dos antepassados.
Algumas ainda com certo perfume, pois "missivista" rima com "fetichista". Nas entrelinhas, uma mancha misteriosa que escapou ao mataborrão. Quiçá lágrima de saudade. Respingo de vela. Ou algo mais lúbrico, proibido para menores de 88 anos.
Herdei belas canetas tinteiro, mas sou da geração Bic 4 Cores. Gastei centenas de Kilometricas, as esferográficas com preço milimétrico. Colecionei borrachas em formato de hambúrguer e ursinho.
Num êxtase "infantopsicotrópico", fui até cheiradora de provas recém-saídas do mimeógrafo. A terrível droga do amor pelo papel e caneta.
Sim, rascunhei este texto num bloquinho. O pequeno escriba melancólico saiu a mim. E a todos aqueles que digitam por necessidade, mas mantêm lápis bem apontados por prazer. Se possível, atrás da orelha. Estamos enferrujados, com certeza, mas ainda temos mão boa para isso. Resistimos, com pelo menos dois "Is" a pingar. Do nosso jeito.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.