Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune

Passear por cemitérios é perceber quão relativa é a noção de posteridade

Tomei gosto por necrópoles, acho poético observar os pontos finais de outras histórias, os canteiros com flores e as lápides

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Eu estava distraída, catando um ponto favorável para o sinal do celular. Atrás de alguma informação sobre os vultos históricos entalhados a ouro no mais rico mármore daqueles jazigos. Então percebi, ao cair do sol, totalmente sozinha, que havia sido trancada no Cemitério Monumental de Milão.

Não fiquei apavorada. Quer dizer: não diante de fantasmas tão bem nascidos e morridos. Como filha temporã, a vida me preparou para a morte desde cedo. E com seu implacável senso de humor, fez de Tia Neném minha primeira defunta. Eu, nove. Ela, 89. Velada em sua cama e enterrada com a camisolinha favorita. Último desejo plenamente atendido, posto que ideal para o sono eterno.

Na colagem digital de Marcelo Martinez: elementos relacionados a cemitério, como lápides e tumbas. Uma pequena silhueta de um homem se destaca, em frente a uma grande rosa vermelha no meio da composição.
Ilustração de Marcelo Martinez para coluna de Bia Braune de 15 de janeiro de 2024 - Folhapress

Por apreciar o tempo que me resta na Terra, tomei gosto por necrópoles. Acho poético observar os pontos finais de outras histórias. Viúvas transidas pela dor, espanando moscas que pairam sobre o ex-vivo enquanto riem baixinho de uma anedota contada à beira do caixão. Afinal, ninguém é triste o tempo todo. Já vi até falecido com sorriso embalsamado.

Gosto dos canteiros com flores, sobretudo de plástico —imorredouras em sua praticidade quase gaiata. Vira e mexe faço a conta entre anos de nascimento e passamento. O coração às vezes fraqueja. "Nossa, tão criança...". E das sóbrias fotos de lápide, me comovem as que retratam a vida como era. Finadas de batom.

Depois que o Jesus Cristo de bronze foi afanado da sepultura do meu avô, o "r" do seu nome apareceu solto. Novamente ao celular, "googlando" que tipo de cola seria capaz de manter unidas as letras e as criaturas ainda viventes da família, notei algo. No túmulo vizinho, de tão frouxos, os caracteres metálicos haviam formado um caça-palavras que converteu "deus" em "desuso".

Imagem que me voltou no dia do enterro mais humilde a que compareci. Na rua da Verdade, o cemitério carioca de Santa Cruz —a sete palmos do mais perfeito simbolismo— descortina um campo-santo de covas rasas a se perder de vista, dotadas apenas de cruzes e números. Nenhum sobrenome, letra, ouro ou mármore. Parentes chorando e relembrando histórias, de cabeça, sobre seus vultos anônimos. Fora da área de cobertura.

Só fui libertada do cemitério milanês quando um vigia assustado escutou meus gritos num impecável italiano macarrônico. No que o grandioso portão se fechou às minhas costas, também refleti sobre o desuso de deuses e a noção relativa de posteridade.

Logo, logo estaremos mortos do mesmo jeitinho. Agora, que restemos em paz.

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