Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune

Não tenho mais coragem de preparar o bolo desde que mamãe morreu

Agora é impossível reproduzir os equívocos que provocaram aquela delícia ou mesmo ouvir o latido dos cachorros

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"Ninguém toca no canapé!" Tia Celina berrava, correndo num slow motion digno de cena eletrizante de novela. Saltando outras garotinhas de coque e tutu num grand jeté. Evitando, heroica, que boquinhas incautas mastigassem a temível iguaria.

Na colagem digital de Marcelo Martinez: um menino segura um grande bolo de chocolate que recebeu uma fita de "1º lugar".
Ilustração de Marcelo Martinez para coluna de Bia Braune de 18 de dezembro de 2023 - Folhapress

Na minha imaginação, claro. Nas festas de fim de ano, os quadradinhos de pão de forma besuntados de maionese sobravam na travessa sem qualquer esforço. Quando não voltavam intocados para casa, humilhados como eu. A galanteza de seus adornos de cenoura e salsinha tapada por um pano de prato que, apesar de tudo, garantia: "Feito com amor".

Criança, no entanto, percebe rápido quando sua vida há de mudar para sempre. E no meu caso, foi numa manhã dos anos 1980. Minha mãe anotando uma receita da "Cozinha Maravilhosa de Ofélia". Posturada e calma, como quem recebia o anúncio do anjo dos quitutes. A tábua com todos os mandamentos e ingredientes para o manjar dos deuses. Digo, bolo de chocolate. "Não solarás!"

O primeiro a virar farelo no amigo oculto da repartição. Na confraternização do grupo das crocheteiras, dos jovens com Cristo e do grupo de estudos marxistas. Por ele, Celina e as demais bailarinas pecavam no repeteco.

Recentemente, enquanto pessoa que mal sabe fazer brigadeiro de colher, descobri a existência do "açúcar impalpável" —o mais poético da confeitaria. Aquele que confere o agridoce ideal a esta história, pois desde que mamãe morreu, não preparamos mais o seu bolo. Nunca tive coragem de pegar seus cadernos e me aventurar pela receita.

Afinal, como reproduzir os equívocos que levavam àquela delícia? Os latidos do nosso cachorro. O telefone que tocava. Tudo que a distraía e fazia a massa passar uns minutinhos. Como recriar as epifanias à beira do forno precisamente desregulado, enquanto ela furava bolo com palito e derramava a calda fumegante?

O perfume divino das raspas de laranja chegando à sala, enquanto mamãe fofocava sobre a filha da vizinha que baixou no hospital com dor de apendicite e voltou com um bebê nos braços. "Aliás, que apendicite bonitinha. A cara da avó!", gargalhava, me dando a colher de pau para lamber.

Onde encontro o açúcar impalpável que ia na mistura daquele bolo? Nenhum outro além daquele. Impalpável. Inefável. Inesquecível. "Meninas levam doce, meninos levam salgado." Ou vice-versa. Fatia perfeita da vida.

BOLO IMPALPÁVEL

De acordo com os cadernos de receita da minha mãe

Ingredientes da massa:

  • 3 xícaras de farinha de trigo
  • 2 xícaras de açúcar
  • 1 xícara de achocolatado
  • 1 colher de café de sal
  • 1 colher de chá de bicarbonato
  • 1 colher de sobremesa (bem cheia) de fermento em pó
  • 2 ovos inteiros
  • 1 xícara de óleo
  • 2 xícaras de água fervendo

Misture os seis primeiros ingredientes, junte os ovos, o óleo e, por último, a água fervendo. Bata bem. Unte então um tabuleiro grande e leve ao forno quente.

Ingredientes da calda:

  • 1 xícara de achocolatado
  • 1 xícara de açúcar
  • 1 xícara de água
  • 1 colher de chá de manteiga
  • Raspas da casca de uma ou duas laranjas

Leve tudo ao fogo brando e deixe ferver até formar uma calda homogênea. Assim que o bolo sair do forno, fure a massa com um garfo e regue o tabuleiro com a calda. Recomenda-se levar à geladeira. Dormido, então, é ainda melhor.

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