Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune
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Viver é gostoso demais para você alimentar essa fama de ruim de boca

Anos a fio, fui humilhada pela iguaria mais famosa da Noruega, do Alasca, das refeições de Natal e de Páscoa

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"Isto aqui, pendurado na sua parede. É um bacalhau?". Arrã. "Mas...". E antes da resposta óbvia, sobre ser uma faiança decorativa típica de Portugal, ofereço o motivo sincero de bandeja. "Trata-se de um troféu. Nem de caça nem de pesca: de boca. Eu venci o bacalhau."

Anos a fio, fui humilhada pela iguaria mais famosa da Noruega, do Alasca, das refeições de Natal e de Páscoa. Nas mesas de boteco, a mesma ladainha. "Não é possível. Não come nem o bolinho???".

No cartum de Marcelo Martinez, o personagem Indiana Jones, em paródia da famosa cena do jantar de "No Templo da Perdição", se serve de cérebro de macaco enquanto recusa o outro prato ofertado pelo garçom, dizendo "Não, obrigado. Não gosto de azeitona!"
Ilustração de Marcelo Martinez para coluna de Bia Braune de 26 de fevereiro de 2024 - Folhapress

Até que decidi: chega, me dá um pedaço. Ser subjugada por um peixe sem cabeça é coisa de quem tem miolo mole. Aliás, miolo: amo. Fígado. Língua. Geleia de mocotó. Hmmm. Mas nem sempre foi assim.

A "foodie" que me habita era tão chata para comer quanto o garoto que pedia brócolis à mãe no comercial de TV. Tanto que fui o terror das tias da merenda. A frustração das avós com espírito de Palmirinha.

Resistia ao irresistível, do misto quente à pipoca. Dependesse de mim, o palhaço do McDonald’s faria malabarismo de nuggets no sinal. Falido já no primeiro picles, na primeira batatinha que cuspi.

Um belo dia, mordisquei, na força do ódio, o tal do bacalhau —e minhas papilas gustativas organizaram um motim. A cada coentro conquistado, a cada jiló que o destino me oferecia, fui deixando de alimentar a fama de ruim de boca.

Celebrei a rendição com baião de dois. Ao hastear a bandeira branca da tapioca, rezei diante da deusa pagã farofa. E no primeiro acarajé puxado no dendê, assinei o tratado de paz comigo mesma.

Ninguém é obrigado a engolir a epifania gastronômica alheia. Aliás, alheira: amo também. O que mais noto por aí, contudo, é um gosto por não gostar. Deleite idiossincrático pelo "não vi e não provei". Pessoas detestando quitutes por mero estilo em vez de provar acepipes que as fariam felizes até o caroço.

"Ora, ora", direis, fazendo cara feia para alcaçuz e aliche. Como digerir tão perigoso prazer? Do mais absoluto nada, a boca enchendo d’água numa aventura sensorial. Apetitoso caminho sem volta, repleto de passas no arroz e cravos nos beijinhos de coco. Podendo levar a queijos fedorentos, quiabos babentos ou —atenção aqui, estômagos sensíveis— abacaxi na pizza.

Será realmente isso que os entojados almejam? Uma vidinha sem sal, catando a cebola do prato até o fim dos tempos? Se sim, melhor não nos convidar para a mesma mesa. Ainda mais agora, que fiz da azeitona minha ultimíssima cruzada. Empadas, me aguardem. Mudar de ideia é gostoso demais.

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