Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune
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Morta em 1902, Glorinha morreu de novo ao ser jogada naquela caçamba

Por entre pedaços de gesso e madeira, avistei o grande caderno, intrigante demais para curiosos dessa mesma laia que a minha

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Maria da Glória já estava suficientemente morta quando veio ao meu encontro. Coisa do destino, que me deu a oportunidade de resgatá-la depois do fim semifinal, digamos assim.

Oficialmente falecida no início do século passado, tenho certeza de que a digníssima senhora morreu pela segunda vez ao ser jogada numa caçamba estacionada diante do meu portão.

Colagem digital de Marcelo Martinez, utilizando elementos ornamentais de álbuns de memórias do século passado
Marcelo Martinez/Folhapress

Antes, porém, que os leitores concluam se tratar de um terrível caso de desova de cadáver, fornecerei explicações. Moro numa casa de beira de rua, ponto propício ao acontecimento de fatos. Fui roubada certa vez, com considerável prejuízo material, mas o que acontece com frequência maior são os assaltos narrativos. Histórias que praticamente tocam minha campainha.

Desta vez, quem me trouxe Maria da Glória foi a tal caçamba com entulhos de uma obra no quarteirão. Por entre pedaços de gesso e madeira, avistei o grande caderno preto, de capa dura, do tipo intrigante demais para curiosos da minha laia. Numa espanada de poeira, consegui ler o nome da minha mais nova e morta amiga nos dourados da encadernação, mas não só isso.

"N’êste livro vive a saudade da esposa extremosa, no conjunto das homenagens sinceras que lhes fôram prestadas por occasião de seu fallecimento occorido n’esta capital em 25 de agosto de 1902", me contou a folha de rosto, no português de vários acordos ortográficos atrás. Algo lindíssimo por si só, não estivessem as páginas repletas também de recibos de missa, recortes de jornal, bilhetes escritos a bico de pena e centenas dos mais belos cromos em voga na belle époque.

Um memorial de anjos, rosas, trevos, pombinhas brancas e mãos rechonchudas que apontavam a palavra "pezames" (sic). Álbum de condolências dedicado à memória da matriarca vitimada pela varíola aos 34 anos, mas pousado em meu colo 122 anos depois.

Glorinha (agora a trato assim, numa meiguice para com re-mortos sobreviventes) emocionou amigos e vizinhos, incrédulos diante da sorte que foi não vê-la parar num aterro comum: retrato fiel do que acontece a tantos parentes descartados.

Quando não tropeçamos em seus sorrisos em preto e branco nas calçadas dos shopping-chão, a maioria vira menos que papel picado. Ou pó. Um lixo que, apesar de extraordinário, comprova certa verdade da vida. Da caçamba viemos e, um dia, à caçamba voltaremos.

Em tempo: Glorinha não foi o único fantasma que encontrei. Na próxima coluna, o relato prêt-à-porter sobre seu herdeiro mais famoso e paradoxalmente desconhecido. Até lá, descansemos em paz

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