[RESUMO] "Ulisses", cujo lançamento completa cem anos na quarta-feira (2), revolucionou o romance moderno com sua densa caracterização de personagens e o emprego desabusado de jogos de linguagem e do fluxo de consciência, tipo específico de monólogo interior. James Joyce foi um artista heroico, escreve autor, e criou uma linguagem universal sobre o desespero da condição humana.
São tantas as revoluções de "Ulisses" no romance moderno que o bêbado Stephen Dedalus ficaria tonto (estupefato radar tantã) só de virar algumas páginas e ser tragado em tantas reviravoltas, sem precisar entornar um trago sequer, dos muitos que tomou ao longo da história —tal qual o beberrão do seu autor, James Joyce, ao soçobrar (segundo ele) sete anos no livro "como um galé".
Como a Terra não é plana, os personagens de "Ulisses" não são chatos. São hilários e tão complexos quanto os heróis de Homero. O épico do escritor irlandês é (des)construído em disparatado paralelo à "Odisseia" do poeta grego do século 8º ou 9º a.C. Joyce não se fez de rogado ao demarcar sua experiência ambiciosa (ponto-chave do modernismo ou pivô pós-moderno?) a partir da matriz literária ocidental.
No guisado regado com cerveja, os protagonistas são Stephen Dedalus (labiríntico herói do primeiro romance de Joyce, "Retrato do Artista quando Jovem", 1916), Leopold Bloom e a esposa Molly Bloom (supostas contrapartes conversíveis de Telêmaco), Ulisses (nome latino de Odisseu) e Penélope, flagradas vaga(l)mente no regresso de Odisseu ao lar após a Guerra de Troia. Mas os fantasmas que mais assombram "Ulisses" talvez sejam os de "Hamlet", tipificando a reciclagem da influência de Shakespeare.
A ação de "Ulisses" (sim: celebrado por jorros de consciência, o romance tem uma porção de acontecimentos patéticos e peripatéticos) se passa em Dublin em 16 de junho de 1904. Um dia na vida de gente comum chei(o)(a) de lugares-incomuns. Começa às oito da matina, na Martello Tower, e segue os périplos atarantados do colportor Leopold e do professor Stephen (o encontro deles é o glorioso nó górdio-gregário do livro), enquanto Molly permanece na cama.
Entre inveteradas peregrinações a pubs e intrincadas discussões alheias às certezas clássicas, Bloom e Dedalus batem ponto no correio, na agência de um jornal, na praia e na biblioteca nacional, antes da noturna conversa fiada finda na desativada torre de defesa do Martello, arrendada por Buck Mulligan, espelho de Dedalus. À espera da traição da mulher e com chifres à flor da testa, Bloom protela a volta ao lar, em odisseia de ciúme contrito.
Com densa caracterização de personagens e desabusados jogos de linguagem (de alto e baixo calão), o romance é famoso pela variação do monólogo interior chamada de "stream of consciousness", ou, dito joycianamente, "riocorrente" da consciência. O motivo-chave veio de obra escrita no século 14 por Dan Michel de Northgate, "Ayenbite of Inwit", que Antônio Houaiss traduz como "remordida do imo-senso" e Augusto de Campos como "remorsura do ensimesmo".
O pioneiro do monólogo interior foi Edouard Dujardin, em "Les Lauriers Sont Coupés" (1887), dicção adotada por Gertrude Stein ("The Making of Americans", 1925) e Virginia Woolf ("Orlando", 1928). Com cerca de 40 mil palavras sem pontuação, o monólogo de Molly é a sensação de "Ulisses", com fecho de chispa libertária: "E seu coração disparando como louco e sim eu disse sim eu quero Sim" (tradução de Haroldo de Campos).
Possuída por uma força estranha à que tomava as pacientes de Charcot, as personagens de Linda Blair ("O Exorcista", 1973, William Friedkin) e Isabelle Adjani ("Possessão", 1981, Andrzej Zulawski), a Penélope charmosa (ou Calipso faceira-feiticeira) deu voz a Nora Barnacle, esposa de Joyce. Para Anthony Burgess, joyciano autor de "Laranja Mecânica" (1962), "essa imagem final é de Nora e não de Molly – Nora escrevia as cartas sem pontuação e é difícil distinguir entre um trecho de uma carta de Nora e um trecho do monólogo de Molly".
Se todo grande homem tem por trás uma grande mulher, Joyce teve duas: Nora e Sylvia Beach, dona da lendária livraria parisiense Shakespeare and Company e audaciosa editora que lançou "Ulisses" em livro, em 2 de fevereiro de 1922, dia dos 40 anos de Joyce. Sim, 16 de junho de 1904 é o dia de Bloom porque foi nessa data o primeiro encontro de Joyce e Nora.
Joyce amargou penúria como professor da escola Berlitz em Zurique e Trieste até que, a partir de 1915, Ezra Pound passou a lhe abrir portas e comportas do mundo intelectual e social, não sem antes lhe comprar um traje adequado. "Deveríamos nos aproximar do ‘Ulisses’ como o pregador batista analfabeto se aproxima do Antigo Testamento: com fé", escreveu William Faulkner, autor de "O Som e a Fúria" (1929), outro diapasão do monólogo interior. Para Harry Levin, com "Ulisses" Joyce escreveu "um romance para acabar com todos os romances".
Um século após a garantia de longevidade dessa revolução literária não ter expirado, o que dizer? Que gerou séquitos de aficcionados? O megalômano Joyce queria leitores que dedicassem a vida à sua interpretação: para ele, "Ulisses" deixaria os críticos ocupados por séculos. Os joycianos não são sectários como os fanáticos bozomoristas; são devotos maníacos do bem, que cultuam a beleza do encantamento e o mistério do conhecimento, bebem cajuína (com ou sem gim) e se perguntam: "Existirmos, a que será que se destina?".
Eis uma assertiva temerária e peremptória: "Ulisses" reinventou na arte as duas mais importantes invenções da ciência no século 20: a psicanálise de Freud (1900) e a teoria da relatividade de Einstein (1905) —e anteviu ainda o princípio da incerteza de Heisenberg (1927).
Tá oquei, antes de Joyce publicar a versão serial de "Ulisses" na Little Review de 1918 a 1920, Picasso e Duchamp já enquadravam Freud e Einstein em fragmentações pictóricas do movimento ("As senhoritas de Avignon", 1907; "Nu Descendo uma Escada", 1912), unidade tripartida do espaço mental (ego, id, superego) e multiplicidade do tempo dimensional.
A originalidade e a proeza prodigiosas de "Ulisses" consistem na escritura de uma pós-prosa (além-prosódia) para descabaçar o lastro celibatário do romance (palinódia do duchampiano "Grande Vidro"?), com roteiro do Mallarmé de "Um Lance de Dados" e "Igitur", cenários de René Magritte e Kurt Schwitters, e trilha sonora da santíssima trindade da iconoclastia composta por Charles Ives, Edgard Varèse e Erik Satie. Heroico e irônico, atualizado e anacrônico? Pois é, proesia.
A intertextualidade e a paródia unem Joyce ao compatriota Jonathan Swift, ao "Tristram Shandy" (1759, Laurence Sterne), a Rabelais (arabescos do grotesco de "Gargântua e Pantagruel", 1564) e a Cervantes (cavaleiro da embriagada figura, Dedalus não foge de Dom Quixote). Se os caudalosos monólogos de "Ulisses" são contrafacção da recusa de "Bartleby, o Escrivão" (1853, Herman Melville), o lúcido nonsense de Joyce ilumina o Samuel Beckett de "Molloy" (1951) e "A Última Fita de Krapp" (1958).
Joyce contou a Beckett sobre a noite do encontro com Marcel Proust em Paris, em 1922. Embora afinados na complexa composição da memória humana, eles não se entenderam: a conversa se resumiu a mútuos e sucessivos "nãos" (e negaram ter lido os respectivos livros). Em tempo: "sim" é a palavra recorrente na corrente monoilógica da soprano Molly, cujo empresário Boylan ar(r)isca capitulá-la como Capitu, em equação booleana do adultério.
Uma das marcas de "Ulisses" é a invenção vocabular, a composição de neologismos e palavras-montagens, a construção por paronomasias, palíndromos e malapropismos —e melopriapismos. O primeiro livro do briaco erógeno da bricolagem de palavras é justamente de poemas, "Música de Câmara" (1907).
Outra marca é a do obsceno. Queimaram 500 exemplares em Nova York (1922) e outros 500 sumiram da alfândega britânica (1923). Banido por seu caráter lúbrico, de pervasiva conotação sexual, circulou em edições clandestinas. Dada a quase ilegibilidade do catatau, é de se supor que o escândalo foi pela terceira via do "hearsay" (ouvi dizer) com que terrivelmente evangélicos censuram sem ler. Sim, rola um papo reto sobre a Bíblia em "Ulisses". Não, "Ulisses" não tem mamadeira de piroca e ninguém vê Homero ou Shakespeare na goiabeira.
Escrito no exílio, esse hino à Irlanda é um mapa minucioso de Dublin, embora muitos detalhes (talvez deliberadamente) sejam errados ou questionáveis. A rota do romance pode ser reconstituída a pé quase no mesmo tempo circunscrito. Não tão jocosamente, Joyce proclamava que sua cidade natal poderia ser refeita das ruínas à imagem do livro.
Pela epopeia episódica e o louvor ao aleatório, "Ulisses" seria um guia para "O Andar do Bêbado: Como o Acaso Determina Nossas Vidas" (2008, Leonard Mlodinow). O culto a "Ulisses" gerou o Bloomsday: a cada 16 de junho o mundo brinda em pubs o gênio de Joyce. A viagem heroica de Homero é transformada em épica de tom menor, e a paisagem é passagem para indagações cósmicas (cômicas) e para o fluxo mental de ébrios brancaleônicos a brandirem indefectíveis trocadilhos (troça-ditos).
Duas obras incontornáveis para entendê-lo são "James Joyce’s Ulysses: a Study" (1930, Stuart Gilbert; anotado por Joyce) e "Ulysses Annotated" (1988, Don Gifford e Robert Seidman).
No Brasil, Oswald de Andrade chama-o de "grande marco antinormativo" em artigos de 1943-1944, e em 2 de fevereiro de 1947 Patrícia Galvão (Pagu) publica "James Joyce, Autor de ‘Ulisses’", nota crítica e primeira tradução de um trecho para o português. A poesia concreta põe Joyce em manifestos de 1956 e no paideuma do Plano Piloto de 1958.
O Brasil acolheu a centelha joyciana em fortuna criativa, como se lê em "Grande Sertão: Veredas" (1956, Guimarães Rosa), "Catatau" (1975, Paulo Leminksi) e "Galáxias" (1984, Haroldo de Campos), e se ouve em "Outras Palavras" (1981, Caetano Veloso). Augusto de Campos lembra que Sousândrade "antecipou Joyce na forjação de palavras-montagem".
Por conta de sua doença na vista, Joyce atirava-se ao chão em convulsões. O colega cego Jorge Luis Borges foi um de seus primeiros leitores, traduziu para o espanhol a última página do "Ulisses" e lhe dedicou um poema em 1968. Como um aleph borgiano, cada pormenor de "Ulisses" propaga-se em outros pontos do enredo. Um dos aforismas fora de série de Borges pode ser aplicado a Joyce: "Bernard Shaw dizia que um escritor tem tanto estilo quanto a sua convicção lhe permitir".
Embora infilmável, ou justamente por isso, "Ulisses" é livro dos mais cinematográficos, em fatura literal e no que projeta de futuro do cinema. Das transposições —"Ulysses" (1967, Joseph Strick), "Bloom" (2003, Sean Walsh) e "Uliisses" (1982, Werner Nekes)—, esta é a mais afeita a Joyce, dada a veia do cineasta-arqueólogo alemão. Um dos maiores cineastas de todos os tempos não só acalentou filmar "Ulisses" como adicionou Joyce às suas teorias.
Sergei Eisenstein escreveu em 1929 "O Princípio Cinematográfico e o Ideograma" e crava a raiz da palavra-montagem: "Ficou a cargo de Joyce desenvolver na literatura o hieróglifo japonês". Em "Realização" (1939), diz que, em "Ulisses", "a literatura adquire uma palpabilidade quase fisiológica". Em "Dickens, Griffith e Nós" (1943), sentencia que, "para encontrar a plenitude de seu sistema, a montagem teve de fazer ‘viagens’ através do ‘monólogo interior’ de Joyce", até descobrir, ornamento secreto com emendas do reator, o "pensamento sensorial".
"Sirva-se!" (1932) vale-se de epígrafe extraída de "Ulisses" ("aquele gesto seria uma linguagem universal, a primeira enteléquia") e confessa: "A mais brilhante realização da literatura [na apresentação do curso de pensamento] foram os imortais ‘monólogos interiores’ em ‘Ulisses’". Ao conhecer o diretor russo em Paris, o quase cego Joyce desejou ver o discurso interior de "O Encouraçado Potemkin" (1925) e "Outubro" (1927).
No fim de "Ulisses", Bloom é flagrado florescendo em flatulências, defecação explícita de idiossincrasias. Em "Vida Contra Morte", Norman O. Brown analisa a analidade em Swift —a descoberta de que "a amada caga" (a flor imperfeita machadianamente nascida do estrume)— e constata o espanto em "Ulisses": a incongruência dual do ser humano, eu simbólico e corpo animal, a plenitude da ambição sublime e a condenação inexorável à deterioração. A ambivalência do judeu Bloom, paradigma de (a)pá(t)ri(d)a: "Nes. Yo." (Nim. São.)
O gênio é uma falha do sistema (Paul Klee) e uma neurose (Gustave Flaubert). Para André Gide, "a audácia mais bela é a do fim da vida" —"admiro-a em Joyce, e em alguns raríssimos artistas cuja obra termina em falésia". Com extremo humor, "Ulisses" escancara a catástrofe de nossa condição em uma cantoria só. Para Faulkner, "todos fracassamos em realizar nosso sonho de perfeição", "de modo que estimo a nós todos com base em nosso esplêndido fracasso em realizar o impossível".
"Ulisses" é um romance sobre o herói moderno, e Joyce foi um artista heroico (categoria tão bem definida por Otto Rank). Com suas artes e manhas, criou uma linguagem universal para nosso amaro desamparo, eletrecitando, em contra-correntes alter(n)adas, os condutores da experiência com amplexos amperes. Seu "desesperanto" é uma desconstrução do esperanto e uma afirmação cheia de graça do desespero da miséria humana. Com traço de troça, joça sem jaça.
A trajetória de James Joyce
2.fev.1882 O escritor nasce em Dublin, na Irlanda
16.jun.1904 Primeiro encontro entre Joyce e sua futura esposa, Nora Barnacle, com quem se casou em 1931
dez.1916 Seu primeiro romance, "Retrato do Artista quando Jovem", de teor autobiográfico, é publicado
1918-1920 Publicação seriada de "Ulisses" nos EUA, na revista The Little Review; trechos considerados obscenos levam a obra a ser banida e seus exemplares, queimados
1920 Depois de morar em Zurique, na Suíça, e Trieste, na Itália, Joyce se muda com a família para Paris, onde permanece até 1940
2.fev.1922 "Ulisses", principal obra do escritor, é lançado na França pela Shakespeare and Company, de Sylvia Beach
4.mai.1939 "Finnegans Wake", seu terceiro e último romance, é publicado
13.jan.1941 Joyce morre em Zurique aos 58 anos, depois de uma cirurgia para tratar uma úlcera perfurada
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.