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Carlos Adriano

Como James Joyce revolucionou o romance moderno com 'Ulisses', que completa 100 anos

Escritor foi heroico e criou uma linguagem universal sobre o desespero da condição humana

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Obra de Sérgio Medeiros retrata o rosto de Joyce refletido nas águas do rio Liffey, na Irlanda Divulgação

Carlos Adriano

Cineasta e doutor pela USP, realizou pós-doutorado em comunicação e semiótica pela PUC-SP e dirigiu "O que Há em Ti" (2020) e "Santos Dumont Pré-cineasta?" (2010), entre outros filmes

[RESUMO] "Ulisses", cujo lançamento completa cem anos na quarta-feira (2), revolucionou o romance moderno com sua densa caracterização de personagens e o emprego desabusado de jogos de linguagem e do fluxo de consciência, tipo específico de monólogo interior. James Joyce foi um artista heroico, escreve autor, e criou uma linguagem universal sobre o desespero da condição humana.

São tantas as revoluções de "Ulisses" no romance moderno que o bêbado Stephen Dedalus ficaria tonto (estupefato radar tantã) só de virar algumas páginas e ser tragado em tantas reviravoltas, sem precisar entornar um trago sequer, dos muitos que tomou ao longo da história —tal qual o beberrão do seu autor, James Joyce, ao soçobrar (segundo ele) sete anos no livro "como um galé".

Como a Terra não é plana, os personagens de "Ulisses" não são chatos. São hilários e tão complexos quanto os heróis de Homero. O épico do escritor irlandês é (des)construído em disparatado paralelo à "Odisseia" do poeta grego do século 8º ou 9º a.C. Joyce não se fez de rogado ao demarcar sua experiência ambiciosa (ponto-chave do modernismo ou pivô pós-moderno?) a partir da matriz literária ocidental.

No guisado regado com cerveja, os protagonistas são Stephen Dedalus (labiríntico herói do primeiro romance de Joyce, "Retrato do Artista quando Jovem", 1916), Leopold Bloom e a esposa Molly Bloom (supostas contrapartes conversíveis de Telêmaco), Ulisses (nome latino de Odisseu) e Penélope, flagradas vaga(l)mente no regresso de Odisseu ao lar após a Guerra de Troia. Mas os fantasmas que mais assombram "Ulisses" talvez sejam os de "Hamlet", tipificando a reciclagem da influência de Shakespeare.

A ação de "Ulisses" (sim: celebrado por jorros de consciência, o romance tem uma porção de acontecimentos patéticos e peripatéticos) se passa em Dublin em 16 de junho de 1904. Um dia na vida de gente comum chei(o)(a) de lugares-incomuns. Começa às oito da matina, na Martello Tower, e segue os périplos atarantados do colportor Leopold e do professor Stephen (o encontro deles é o glorioso nó górdio-gregário do livro), enquanto Molly permanece na cama.

Entre inveteradas peregrinações a pubs e intrincadas discussões alheias às certezas clássicas, Bloom e Dedalus batem ponto no correio, na agência de um jornal, na praia e na biblioteca nacional, antes da noturna conversa fiada finda na desativada torre de defesa do Martello, arrendada por Buck Mulligan, espelho de Dedalus. À espera da traição da mulher e com chifres à flor da testa, Bloom protela a volta ao lar, em odisseia de ciúme contrito.

Com densa caracterização de personagens e desabusados jogos de linguagem (de alto e baixo calão), o romance é famoso pela variação do monólogo interior chamada de "stream of consciousness", ou, dito joycianamente, "riocorrente" da consciência. O motivo-chave veio de obra escrita no século 14 por Dan Michel de Northgate, "Ayenbite of Inwit", que Antônio Houaiss traduz como "remordida do imo-senso" e Augusto de Campos como "remorsura do ensimesmo".

O pioneiro do monólogo interior foi Edouard Dujardin, em "Les Lauriers Sont Coupés" (1887), dicção adotada por Gertrude Stein ("The Making of Americans", 1925) e Virginia Woolf ("Orlando", 1928). Com cerca de 40 mil palavras sem pontuação, o monólogo de Molly é a sensação de "Ulisses", com fecho de chispa libertária: "E seu coração disparando como louco e sim eu disse sim eu quero Sim" (tradução de Haroldo de Campos).

Possuída por uma força estranha à que tomava as pacientes de Charcot, as personagens de Linda Blair ("O Exorcista", 1973, William Friedkin) e Isabelle Adjani ("Possessão", 1981, Andrzej Zulawski), a Penélope charmosa (ou Calipso faceira-feiticeira) deu voz a Nora Barnacle, esposa de Joyce. Para Anthony Burgess, joyciano autor de "Laranja Mecânica" (1962), "essa imagem final é de Nora e não de Molly – Nora escrevia as cartas sem pontuação e é difícil distinguir entre um trecho de uma carta de Nora e um trecho do monólogo de Molly".

Se todo grande homem tem por trás uma grande mulher, Joyce teve duas: Nora e Sylvia Beach, dona da lendária livraria parisiense Shakespeare and Company e audaciosa editora que lançou "Ulisses" em livro, em 2 de fevereiro de 1922, dia dos 40 anos de Joyce. Sim, 16 de junho de 1904 é o dia de Bloom porque foi nessa data o primeiro encontro de Joyce e Nora.

homem branco de óculos e terno claro com tapa-olho
O escritor irlandês James Joyce, autor de 'Ulisses', em retrato de 1926 - Reprodução

Joyce amargou penúria como professor da escola Berlitz em Zurique e Trieste até que, a partir de 1915, Ezra Pound passou a lhe abrir portas e comportas do mundo intelectual e social, não sem antes lhe comprar um traje adequado. "Deveríamos nos aproximar do ‘Ulisses’ como o pregador batista analfabeto se aproxima do Antigo Testamento: com fé", escreveu William Faulkner, autor de "O Som e a Fúria" (1929), outro diapasão do monólogo interior. Para Harry Levin, com "Ulisses" Joyce escreveu "um romance para acabar com todos os romances".

Um século após a garantia de longevidade dessa revolução literária não ter expirado, o que dizer? Que gerou séquitos de aficcionados? O megalômano Joyce queria leitores que dedicassem a vida à sua interpretação: para ele, "Ulisses" deixaria os críticos ocupados por séculos. Os joycianos não são sectários como os fanáticos bozomoristas; são devotos maníacos do bem, que cultuam a beleza do encantamento e o mistério do conhecimento, bebem cajuína (com ou sem gim) e se perguntam: "Existirmos, a que será que se destina?".

Eis uma assertiva temerária e peremptória: "Ulisses" reinventou na arte as duas mais importantes invenções da ciência no século 20: a psicanálise de Freud (1900) e a teoria da relatividade de Einstein (1905) —e anteviu ainda o princípio da incerteza de Heisenberg (1927).

Tá oquei, antes de Joyce publicar a versão serial de "Ulisses" na Little Review de 1918 a 1920, Picasso e Duchamp já enquadravam Freud e Einstein em fragmentações pictóricas do movimento ("As senhoritas de Avignon", 1907; "Nu Descendo uma Escada", 1912), unidade tripartida do espaço mental (ego, id, superego) e multiplicidade do tempo dimensional.

A originalidade e a proeza prodigiosas de "Ulisses" consistem na escritura de uma pós-prosa (além-prosódia) para descabaçar o lastro celibatário do romance (palinódia do duchampiano "Grande Vidro"?), com roteiro do Mallarmé de "Um Lance de Dados" e "Igitur", cenários de René Magritte e Kurt Schwitters, e trilha sonora da santíssima trindade da iconoclastia composta por Charles Ives, Edgard Varèse e Erik Satie. Heroico e irônico, atualizado e anacrônico? Pois é, proesia.

A intertextualidade e a paródia unem Joyce ao compatriota Jonathan Swift, ao "Tristram Shandy" (1759, Laurence Sterne), a Rabelais (arabescos do grotesco de "Gargântua e Pantagruel", 1564) e a Cervantes (cavaleiro da embriagada figura, Dedalus não foge de Dom Quixote). Se os caudalosos monólogos de "Ulisses" são contrafacção da recusa de "Bartleby, o Escrivão" (1853, Herman Melville), o lúcido nonsense de Joyce ilumina o Samuel Beckett de "Molloy" (1951) e "A Última Fita de Krapp" (1958).

Obra da série ‘A Visual Finnegans Wake on the Island of Breasil’, de Sérgio Medeiros. Imagem recria uma página de ‘Ulisses’, em que Joyce emprega várias vezes as iniciais de seu nome, JJ, em uma espécie de autorretrato verbal - Divulgação

Joyce contou a Beckett sobre a noite do encontro com Marcel Proust em Paris, em 1922. Embora afinados na complexa composição da memória humana, eles não se entenderam: a conversa se resumiu a mútuos e sucessivos "nãos" (e negaram ter lido os respectivos livros). Em tempo: "sim" é a palavra recorrente na corrente monoilógica da soprano Molly, cujo empresário Boylan ar(r)isca capitulá-la como Capitu, em equação booleana do adultério.

Uma das marcas de "Ulisses" é a invenção vocabular, a composição de neologismos e palavras-montagens, a construção por paronomasias, palíndromos e malapropismos —e melopriapismos. O primeiro livro do briaco erógeno da bricolagem de palavras é justamente de poemas, "Música de Câmara" (1907).

Outra marca é a do obsceno. Queimaram 500 exemplares em Nova York (1922) e outros 500 sumiram da alfândega britânica (1923). Banido por seu caráter lúbrico, de pervasiva conotação sexual, circulou em edições clandestinas. Dada a quase ilegibilidade do catatau, é de se supor que o escândalo foi pela terceira via do "hearsay" (ouvi dizer) com que terrivelmente evangélicos censuram sem ler. Sim, rola um papo reto sobre a Bíblia em "Ulisses". Não, "Ulisses" não tem mamadeira de piroca e ninguém vê Homero ou Shakespeare na goiabeira.

Escrito no exílio, esse hino à Irlanda é um mapa minucioso de Dublin, embora muitos detalhes (talvez deliberadamente) sejam errados ou questionáveis. A rota do romance pode ser reconstituída a pé quase no mesmo tempo circunscrito. Não tão jocosamente, Joyce proclamava que sua cidade natal poderia ser refeita das ruínas à imagem do livro.

Pela epopeia episódica e o louvor ao aleatório, "Ulisses" seria um guia para "O Andar do Bêbado: Como o Acaso Determina Nossas Vidas" (2008, Leonard Mlodinow). O culto a "Ulisses" gerou o Bloomsday: a cada 16 de junho o mundo brinda em pubs o gênio de Joyce. A viagem heroica de Homero é transformada em épica de tom menor, e a paisagem é passagem para indagações cósmicas (cômicas) e para o fluxo mental de ébrios brancaleônicos a brandirem indefectíveis trocadilhos (troça-ditos).

Duas obras incontornáveis para entendê-lo são "James Joyce’s Ulysses: a Study" (1930, Stuart Gilbert; anotado por Joyce) e "Ulysses Annotated" (1988, Don Gifford e Robert Seidman).

No Brasil, Oswald de Andrade chama-o de "grande marco antinormativo" em artigos de 1943-1944, e em 2 de fevereiro de 1947 Patrícia Galvão (Pagu) publica "James Joyce, Autor de ‘Ulisses’", nota crítica e primeira tradução de um trecho para o português. A poesia concreta põe Joyce em manifestos de 1956 e no paideuma do Plano Piloto de 1958.

O Brasil acolheu a centelha joyciana em fortuna criativa, como se lê em "Grande Sertão: Veredas" (1956, Guimarães Rosa), "Catatau" (1975, Paulo Leminksi) e "Galáxias" (1984, Haroldo de Campos), e se ouve em "Outras Palavras" (1981, Caetano Veloso). Augusto de Campos lembra que Sousândrade "antecipou Joyce na forjação de palavras-montagem".

Por conta de sua doença na vista, Joyce atirava-se ao chão em convulsões. O colega cego Jorge Luis Borges foi um de seus primeiros leitores, traduziu para o espanhol a última página do "Ulisses" e lhe dedicou um poema em 1968. Como um aleph borgiano, cada pormenor de "Ulisses" propaga-se em outros pontos do enredo. Um dos aforismas fora de série de Borges pode ser aplicado a Joyce: "Bernard Shaw dizia que um escritor tem tanto estilo quanto a sua convicção lhe permitir".

Embora infilmável, ou justamente por isso, "Ulisses" é livro dos mais cinematográficos, em fatura literal e no que projeta de futuro do cinema. Das transposições —"Ulysses" (1967, Joseph Strick), "Bloom" (2003, Sean Walsh) e "Uliisses" (1982, Werner Nekes)—, esta é a mais afeita a Joyce, dada a veia do cineasta-arqueólogo alemão. Um dos maiores cineastas de todos os tempos não só acalentou filmar "Ulisses" como adicionou Joyce às suas teorias.

Sergei Eisenstein escreveu em 1929 "O Princípio Cinematográfico e o Ideograma" e crava a raiz da palavra-montagem: "Ficou a cargo de Joyce desenvolver na literatura o hieróglifo japonês". Em "Realização" (1939), diz que, em "Ulisses", "a literatura adquire uma palpabilidade quase fisiológica". Em "Dickens, Griffith e Nós" (1943), sentencia que, "para encontrar a plenitude de seu sistema, a montagem teve de fazer ‘viagens’ através do ‘monólogo interior’ de Joyce", até descobrir, ornamento secreto com emendas do reator, o "pensamento sensorial".

"Sirva-se!" (1932) vale-se de epígrafe extraída de "Ulisses" ("aquele gesto seria uma linguagem universal, a primeira enteléquia") e confessa: "A mais brilhante realização da literatura [na apresentação do curso de pensamento] foram os imortais ‘monólogos interiores’ em ‘Ulisses’". Ao conhecer o diretor russo em Paris, o quase cego Joyce desejou ver o discurso interior de "O Encouraçado Potemkin" (1925) e "Outubro" (1927).

Em cima, um telão exibe cenas de marinheiros do filme 'O Encouraçado Potemkin', enquanto, à frente, é possível ver uma orquestra que se apresenta
Orquestra Jazz Sinfônica acompanha a exibição do filme 'O Encouraçado Potemkin' durante encerramento da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo - Caio Guatelli - 11.mar.05/Folhapress

No fim de "Ulisses", Bloom é flagrado florescendo em flatulências, defecação explícita de idiossincrasias. Em "Vida Contra Morte", Norman O. Brown analisa a analidade em Swift —a descoberta de que "a amada caga" (a flor imperfeita machadianamente nascida do estrume)— e constata o espanto em "Ulisses": a incongruência dual do ser humano, eu simbólico e corpo animal, a plenitude da ambição sublime e a condenação inexorável à deterioração. A ambivalência do judeu Bloom, paradigma de (a)pá(t)ri(d)a: "Nes. Yo." (Nim. São.)

O gênio é uma falha do sistema (Paul Klee) e uma neurose (Gustave Flaubert). Para André Gide, "a audácia mais bela é a do fim da vida" —"admiro-a em Joyce, e em alguns raríssimos artistas cuja obra termina em falésia". Com extremo humor, "Ulisses" escancara a catástrofe de nossa condição em uma cantoria só. Para Faulkner, "todos fracassamos em realizar nosso sonho de perfeição", "de modo que estimo a nós todos com base em nosso esplêndido fracasso em realizar o impossível".

"Ulisses" é um romance sobre o herói moderno, e Joyce foi um artista heroico (categoria tão bem definida por Otto Rank). Com suas artes e manhas, criou uma linguagem universal para nosso amaro desamparo, eletrecitando, em contra-correntes alter(n)adas, os condutores da experiência com amplexos amperes. Seu "desesperanto" é uma desconstrução do esperanto e uma afirmação cheia de graça do desespero da miséria humana. Com traço de troça, joça sem jaça.

A trajetória de James Joyce

2.fev.1882 O escritor nasce em Dublin, na Irlanda

16.jun.1904 Primeiro encontro entre Joyce e sua futura esposa, Nora Barnacle, com quem se casou em 1931

dez.1916 Seu primeiro romance, "Retrato do Artista quando Jovem", de teor autobiográfico, é publicado

1918-1920 Publicação seriada de "Ulisses" nos EUA, na revista The Little Review; trechos considerados obscenos levam a obra a ser banida e seus exemplares, queimados

1920 Depois de morar em Zurique, na Suíça, e Trieste, na Itália, Joyce se muda com a família para Paris, onde permanece até 1940

2.fev.1922 "Ulisses", principal obra do escritor, é lançado na França pela Shakespeare and Company, de Sylvia Beach

4.mai.1939 "Finnegans Wake", seu terceiro e último romance, é publicado

13.jan.1941 Joyce morre em Zurique aos 58 anos, depois de uma cirurgia para tratar uma úlcera perfurada

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