Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Luiz Felipe Pondé

Santa Inquisição foi feita para matar cátaros, não para perseguir mulheres

Se fosse um religioso, o que não sou, minha total simpatia iria para esses hereges medievais, que se diziam os 'bons homens'

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Afinal, de onde surgiu o mal? Sei que é comum se descartar essa questão como sendo bobagem. Tudo é relativo, logo, não existe o mal nem o bem, nem o certo e o errado. Qualquer bom cético considera esse tipo de afirmação, quando feita de forma gloriosa, coisa de iniciante. A origem do mal sempre preocupou a filosofia e as religiões.

Eu posso, por exemplo, assumir que aquilo que chamamos de "o mal" nada mais seja do que a descrição aterrorizada dos efeitos da contingência cega sobre nós. Tese consistente e que, a propósito, o filósofo da religião Mircea Eliade, no século 20, dizia ser a causa primeira das religiões, "o terror da contingência".

Título: Os cristãos sombrios  A ilustração figurativa de Ricardo Cammarota foi executada em técnica manual com tinta nanquim e pincel sobre papel branco. Depois, a ilustração foi escaneada, colonizada e montada digitalmente para formar uma composição. Traços do pincel em preto sobre fundo amarelo chapado e alguns tons de branco.  Na horizontal, proporção 17,5cm x 9,5cm, a ilustração figurativa não apresenta uma narrativa linear. Elementos e figuras soltos, estilizados em traços leves compõem a situação. Ao centro, uma fogueira queimando 3 livros. Abaixo, à esquerda, 3 figuras humanas sentadas em cadeiras diante a uma mesa com seus notebooks e papéis. Essas figuras, masculinas, usam roupa de religiosos e estão diante à fogueira. No canto superior, à esquerda, a figura de um sol e uma outra face embaixo, envoltos por asas. Ao lado, três homens antigos religiosos, juntos, observam. No canto superior, à direita, uma multidão de pessoas que parecem também observar a situação. Abaixo, uns 6 livros abertos, de baixo para cima, vão se transformando em formatos de pássaros voando em direção ao horizonte distante.
Ilustração de Ricardo Cammarota para coluna de Pondé de 21.jul.2024. - Ricardo Cammarota/Arte/Folhapress

A natureza do mal, enfim, a causa do mundo ser como é —um lugar de dor e morte— sempre foi objeto de reflexão no cristianismo. Se por um lado sinto saudades de Deus, como diz uma personagem no filme de Manuel de Oliveira "O Convento", por outro, o Diabo me parece mais fácil de crer.

Vou dizer hoje para você que, se eu fosse um religioso, o que não sou, minha total simpatia iria para os hereges cátaros medievais, dos séculos 12, 13 e 14. Seu epicentro geográfico foi o sul da França e o norte da Itália, e seu primos, os bogomilos, eram dos Bálcãs, região da Bulgária e da Romênia.

Me parece que esses cristãos sombrios, em meio ao universo das teologias existentes, tinham razão sobre o mundo e os atormentados que nele habitam.

A famosa Santa Inquisição foi sistematizada e posta em prática para matar os cátaros —e não, como pensa o senso comum feminista, para perseguir mulheres, apesar de que, claro, matou muitas mulheres, principalmente as cátaras. Bernardo Gui foi, talvez, o maior inquisidor envolvido nas fogueiras que queimaram os cátaros.

A palavra "cátaro" vem do grego "katharói", que pode ser traduzido por "puros". Eles nunca usaram o termo para si mesmos, mas a inquisição os chamou de cátaros, e assim ficou. Eles se referiam a si mesmos como "bons homens" e "boas mulheres".

Seria impossível aqui entrar nos meandros sociais, políticos, econômicos e pastorais que a igreja cristã cátara significou. Apenas deixemos claro que reis e a igrejaromana os perseguiram e mataram em guerras e fogueiras por quase três séculos.

Concentremo-nos na sua teoria da criação do mundo. Mas, antes de tudo, que fique claro que a espiritualidade cátara se fundamentava numa experiência existencial evidente e não em mera filosofia, catequese ou escrituras sagradas. A experiência do mal se impõe como fato inquestionável no mundo e nos corpos.

Nossos hereges eram dualistas. Dualismo é uma teoria segundo a qual existem dois princípios criadores que atuam na realidade —portanto, não um deus único. Um principio da realidade visível e um da invisível. Matéria versus espírito ou alma, basicamente.

O dualismo na herança cristã antiga e medieval tem cauda longa. Desde os agnósticos nos primeiros séculos, passando pelos maniqueus persas pouco depois, até os bogomilos e cátaros na Idade Média, os dualistas cristãos acreditavam —e existem textos "revelados" sagrados deles que atestavam essa crença— que o mundo material foi criado por um deus mau e por isso existe a morte, o envelhecimento e a violência da natureza e do cosmos que esmaga todos os corpos.

Já o mundo invisível, imaterial e perfeito foi criado por um deus bom que enviou o Cristo, puro espírito, para nos pôr a par da tragédia.

Somos fruto dessa dualidade: um corpo precário que prende um espírito a princípio livre. Anjos que, na sua inveja de Deus, tombaram no abismo que é esse mundo físico. A reprodução era proibida a fim de negar ao Diabo mais vítimas.

A propósito, esse dualismo existe no islã também. A etnia iazidi, chacinada pelo califado do Estado Islâmico no passado recente —ninguém deu a mínima bola na época—, partilha de cosmologia semelhante. Uma comunidade iazidi vive em paz na Armênia. Um anjo mau recebeu de Alá o direito de fazer o que quisesse conosco e com o mundo. Para os cátaros, esse anjo mau era o Diabo, claro.

Vivesse eu no sul da França ou no norte da Itália entre os séculos 12 e 14, provavelmente simpatizaria com os cátaros.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.