Bruno Gualano

É professor do Centro de Medicina do Estilo de Vida da Faculdade de Medicina da USP. Também é autor de 'Bel, a Experimentadora'

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Bruno Gualano
Descrição de chapéu Coronavírus

No Placar da Vida, onde foram parar os sequelados?

Pantomima estatística do governo federal ignora os efeitos nos sobreviventes

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O “Placar da Vida” é um destes termos infelizes concebidos à feição da novilingua orwelliana, que desvirtua a semântica em prol da manipulação.

Na pantomima estatística criada pelo governo federal para celebrar dados positivos da pandemia (!), o desfecho da doença se resume ao binário: óbito ou cura. Porém, entre os “vitoriosos” categorizados no segundo grupo, há os menos afortunados, que sofrem com sintomas da doença por um tempo que ainda não pôde ser determinado pela ciência.

Um estudo demostrou que pacientes previamente hospitalizados por Covid-19 e reavaliados cerca de dois meses após a alta apresentavam fadiga (53%), falta de ar (43%), dor articular (27%) e dor torácica (22%). A minoria não relatou sintomas persistentes (13%).

Outro trabalho realizado com 100 pacientes recentemente recuperados da Covid-19 —67 dos quais sem necessidade de hospitalização— evidenciou que nada menos que 78 apresentaram algum envolvimento cardíaco. Se esses achados patológicos se resolvem ou se agravam ao longo do tempo, não sabemos.

Nem mesmo o atleta passa ileso ao novo coronavírus. É o que aponta um estudo conduzido com 26 esportistas universitários, avaliados por ressonância magnética entre 11 a 53 dias após a quarentena recomendada. Embora a maioria fosse assintomática, os exames revelaram alterações cardíacas sugestivas de inflamação e dano no coração em 46% dos jovens. Há pouco, recomendava-se que o atleta assintomático se afastasse de sua atividade por apenas duas semanas. Com esses novos achados, as condutas podem ter de ser revistas. Na presença de sintomas de Covid-19 (confirmada ou não), é prudente evitar o esporte. Por quanto tempo é a incógnita.

Uma recuperação ainda mais problemática é prevista quando a doença se manifesta em sua forma grave. Pacientes sujeitos a internações prolongadas, intubação, uso de respiradores e diálise podem experimentar rápida deterioração da saúde geral. Perdas de funcionalidade e massa muscular, fibrose pulmonar, trombose e insuficiências cardíaca e renal são alguns dos quadros possíveis, que podem persistir. Sem mencionar os possíveis impactos na saúde mental, que ainda carecem de investigação mais abrangente.

Como recuperar o paciente sobrevivente de Covid-19 é uma questão que certamente ocupará a agenda de cientistas e profissionais de saúde.

A solução deve passar pela multidisciplinariedade. Intervenções que combinem reabilitação pulmonar, exercícios físicos, suporte psicológico e tratamentos farmacológicos específicos para cada sintoma persistente poderão restaurar, parcial ou completamente, a saúde e a qualidade de vida do paciente. Antes, contudo, cada tratamento proposto deverá ser testado para eficácia (há benefícios?), segurança (há riscos?), viabilidade (é exequível?) e generabilidade (serve a quem?). Com recursos adequados e algum tempo, a ciência dirá.

Certo é que o enorme contingente de sequelados pela Covid-19 demandará do sistema público de saúde, já pressionado pela recorrente escassez de recursos somada à emergência sanitária. Muitos pacientes deverão retomar a vida normal em poucos dias, enquanto outros poderão sofrer de comorbidades cronicamente.

Em meio ao cenário de incertezas, a celebração dos “curados” no Placar da Vida soa atroz: a cura completa não é certa para todos, e muito menos se trata de um jogo de perde e ganha.

Diante do mar de mortos e sequelados desta pandemia, quem teria a indignidade de apontar um único vencedor?

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