Cláudia Collucci

Jornalista especializada em saúde, autora de “Quero ser mãe” e “Por que a gravidez não vem?”.

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Cláudia Collucci

Ninguém merece ser torturado em hospital no fim da vida

Médico relata sobre sofrimento causado a idosa de 88 anos com procedimentos desnecessários

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Foi com música que eu me despedi de minha mãe. 'Se essa rua, se essa rua fosse minha', cantei ao lado da cama, sem a certeza de que me ouvia. Bem perto do ouvido, coloquei uma linda Ave Maria, em flauta e piano. Pouco depois, ela se foi, quietinha. Em paz.

O relato comovente acima é da minha amiga Célia Rennó Brochetto, que perdeu a mãe nesta segunda (2), após anos de enfrentamento da doença de Alzheimer. Após lê-lo, deparei-me com outro relato impactante sobre assunto correlato, mas com desfecho bem diferente.

Em texto publicado no jornal americano The Washington Post, o médico Geoffrey Hosta trata sobre como médicos, inclusive ele, estão torturando, sem a menor necessidade, idosos com demência no fim da vida.

Essa é uma leitura obrigatória para todos nós. Seja porque temos algum familiar ou conhecido nessa situação seja porque seremos nós mesmos os candidatos a vivenciá-la no futuro. Afinal, um a cada quatro idosos desenvolverá demência. Em um trecho do texto, Hosta diz:

Recentemente, torturei uma mulher de 88 anos com demência avançada. Sua mente já havia ido embora. Ela não sabia o próprio nome. Como outros pacientes com demência avançada, ela sofria de incontinência, agressividade, imobilidade, dor não tratada e muito mais. Sua qualidade de vida era sombria. A família a levou ao hospital porque ela estava com febre alta e mais confusa do que o normal. Eu sabia que ela estava perto de seu fim.

O médico afirma ter perguntado claramente à filha, ao genro e ao neto se eles queriam que fossem feitos procedimentos que poderiam ser bem dolorosos e que não melhorariam a qualidade de vida ou se autorizavam que a idosa pudesse ir em paz.

Diante dessa possibilidade de escolha, diz ele, algumas famílias permitem que a natureza siga seu curso, recusando intervenções médicas além do atendimento de conforto, o que entendemos como cuidados paliativos (como remédios para dor e oxigênio).

Outras, porém, optam por todas as intervenções médicas possíveis, mesmo cientes de que elas não vão melhorar o quadro de demência ou que podem até acelerá-la. Segundo Hosta, a maioria das famílias ainda escolhe a segunda opção. Foi o caso dos familiares da sua paciente, que pediram que ele "fizesse de tudo" possível para tratá-la.

Então eu fiz. Eu lhe dei antibióticos intravenosos. Inserimos um cateter urinário que lhe causou mais desconforto, e puncionamos uma veia no pescoço com uma agulha grossa. Nós não paramos por aí. Quando o coração parou, fizemos uma reanimação cardiorrespiratória (RCP), que quebrou algumas costelas. Por fim, eu e as enfermeiras forçamos um tubo de respiração em sua garganta.

Imagine como isso foi desconfortável e assustador para minha paciente, que não sabia onde estava ou quem era, mas ainda sentia dor e medo. Infelizmente, sua demência estava avançada demais para ela se opor. Eu tive que aderir aos desejos bem-intencionados e comoventes de sua família. Mas nada disso ajudou minha paciente. Ela morreu dentro de um dia.

Se sua família tivesse escolhido os cuidados paliativos, ela poderia ter passado seus últimos momentos pacificamente cercados por entes queridos. Em vez disso, ela morreu em um sofrimento terrível.

Hosta diz ainda que é possível que sua paciente pudesse ter vivido mais tempo sem esses procedimentos. E lembra que mesmo que pacientes com demência avançada sobrevivam a essas provações, sofrem recuperações muito difíceis por conta de outras doenças associadas.

Ele recomenda fortemente que as pessoas documentem seus desejos de assistência médica no final de vida. As ferramentas para isso são as diretivas antecipadas de vontade ou testamento vital.

Para o médico, porém, só registrar o documento não basta. É preciso que a pessoa tenha um "procurador", alguém da família que ele eleja como a pessoa que vai garantir que seu desejo seja cumprido. Vale também compartilhar a decisão com seus familiares e médicos.

Minha mãe não deixou um documento explicitando seus desejos de fim de vida. Mas eu a conhecia muito bem e, um dia antes de morrer de câncer avançado no fígado, ela me deu uma senha preciosa: confidenciou-me que o único medo que tinha era de ficar numa UTI, doente por muito tempo.

No dia seguinte, quando os médicos constataram que ela estava em choque séptico, tive duas opções: entubá-la ou deixar que a natureza seguisse seu curso. Não hesitei em optar pela segunda alternativa. Mamãe se foi poucas horas depois. Não sem antes ouvir o quanto a amávamos e dar o seu último lindo sorriso.

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