Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Clóvis Rossi
Descrição de chapéu Governo Trump

Começou a guerra fria do século 21

Embate comercial entre a China e os EUA pode definir potência hegemônica dos próximos anos

O que ocorreu na quinta-feira (22), o dia em que Donald Trump atacou frontalmente a China, não é o início de uma guerra comercial, mas o princípio da Guerra Fria do século 21.

Uma guerra que, dependendo das dimensões das próximas salvas de um lado e do outro, pode definir a potência hegemônica dos próximos muitíssimos anos. Hoje, são os Estados Unidos, mas a China está avançando aceleradamente.

Por isso mesmo, Trump atacou o coração da política econômica chinesa. Os bens sobre os quais incidirão os anunciados US$ 60 bilhões (R$ 199,5 bilhões) em tarifas figuram no plano chinês batizado de “Made in China 2025". Para resumir, são os setores do futuro (tecnologia da informação, robótica, veículos que usam a chamada nova energia, biotecnologia e por aí vai).

O presidente americano Donald Trump após assinar o documento que impõe sanções comerciais à China
O presidente americano Donald Trump após assinar o documento que impõe sanções comerciais à China - Jonathan Ernst - 22.mar.2018/Reuters

As autoridades americanas não deixaram a menor dúvida sobre o alcance estratégico das medidas anunciadas. Disse, por exemplo, Robert Lighthizer, responsável pelo comércio exterior americano:

“Tecnologia é, provavelmente, a parte mais importante de nossa economia. Há 44 milhões de pessoas que trabalham em áreas de conhecimento de alta tecnologia. Nenhum país tem indústrias intensivas em tecnologia como os Estados Unidos. E a tecnologia é realmente a espinha dorsal do futuro da economia americana”.

Como entra a China nessa história? Simples: os americanos —e não apenas o governo Trump— acham que a China está usando recursos ilícitos para roubar tecnologia dos Estados Unidos e, com isso, construir a sua própria economia do futuro e suplantar os americanos.

Até Paul Krugman, o economista mais crítico de Trump (e das medidas anunciadas na quinta-feira), admite, em coluna para The New York Times:

“Sejamos claros: no que se refere à ordem econômica global, a China é de fato uma cidadã má. Em particular, joga rápido e livremente em propriedade intelectual, subtraindo tecnologias e ideias desenvolvidas em outros lugares. Ela também subsidia algumas indústrias, incluindo o aço, contribuindo para o excesso global de produção".

Esse mau comportamento dos chineses, como o definem à direita e à esquerda nos EUA, levou, segundo Trump, ao fechamento, em curto período, de 60 mil fábricas, à perda de 6 milhões de empregos e ao maior déficit comercial de todos os tempos com a China (em menos de 20 anos, mais do que quintuplicou, atingindo US$ 337 bilhões ou R$ 1,1 trilhão).

Seria, sempre na visão do atual presidente, uma espécie de Pearl Harbor econômico-comercial, suficiente para provocar a resposta agora dada, assim como os Estados Unidos entraram na guerra contra o Japão após o ataque a Pearl Harbor.

Com a China, ao contrário do que aconteceu com o Japão, não haverá (espera-se) uma guerra quente. E é imprevisível o desfecho dela, se é que haverá algum desfecho. Nesse tipo de conflito incruento, é sempre mais fácil uma acomodação qualquer.

De todo modo, os Estados Unidos saíram na frente: ao alvejar os setores básicos do programa “Made in China 2025", forçam os chineses, em tese, a mexer no que costuma ser sagrado em economias centralmente planejadas. Mexidas forçadas sempre têm custos.

Mas Krugman vê problemas para os próprios Estados Unidos com os disparos agora dados.

O primeiro deles: “Muito do grande déficit [comercial] é ilusão estatística", porque a China é o que muitos chamam de “Grande Montadora". Exporta produtos que monta com partes produzidas em países como Japão e Coreia do Sul (aliás, grandes aliados americanos).

O exemplo clássico, completa Krugman, é o do iPhone, que pode trazer o rótulo “made in China”, mas para o qual o trabalho e o capital chinês correspondem a poucos por cento do preço final.

Tudo somado, fica claro que a nova Guerra Fria é muito diferente da velha, entre o comunismo e o capitalismo. Antes, comunismo era comunismo e capitalismo era capitalismo. Ponto. Agora, há uma tal imbricação entre um comunismo capitalista como o da China e o capitalismo de seu rival que os disparos podem matar tanto os atiradores como os alvejados.

Erramos: o texto foi alterado

No texto "Começou a Guerra Fria do século 21", há dois erros de conversão de moedas. As tarifas americanas no valor de US$ 60 bilhões correspondem a R$ 199,5 bilhões. Já o déficit comercial dos EUA em relação à China é de US$ 337 bilhões, o equivalente a R$ 1,1 trilhão.   

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