Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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Conrado Hübner Mendes
Descrição de chapéu Folhajus

Devo, não nego, julgo quando quiser

STF trata sua pauta como rascunho, não como roteiro das urgências constitucionais do país

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Hoje poderia ser dia de celebração de direitos indígenas no STF. O tribunal teria a chance de se corrigir e dizer que o direito indígena à terra não supõe presença física, nas respectivas áreas, em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição. A tese do “marco temporal” foi inventada pelo STF anos atrás e passou a integrar a jurisprudência constitucional da vergonha alheia.

A decisão infame inspirou parecer da AGU, que generalizou o critério do marco temporal para demarcação de terras. A partir daí, a omissão do Executivo, somada a decisões judiciais desencontradas, produziu notável prejuízo ao projeto constitucional. Recentes decisões monocráticas do STF já interromperam demarcações que tramitavam há mais de três décadas.

Luiz Fux, porém, resolveu tirar o caso da agenda e deixá-lo para outra hora, para a hora que lhe der na telha. Numa frívola canetada, dias antes da sessão de julgamento, e sem qualquer explicação, limitou-se a registro burocrático: “excluído da sessão de 28/10”. A vida institucional segue como se nada de extraordinariamente errado tivesse passado.

A falta de decisão do STF, enquanto isso, só faz acirrar conflitos fundiários e violência.

Foi um gesto rotineiro de descaso, deslealdade e desrespeito a todos que levam o tribunal a sério e se mobilizam, na data marcada, para cada julgamento. Incorrem em custos para ir até Brasília, publicam artigos, reaquecem argumentos, promovem reuniões e debates. Os juristas Oscar Vilhena Vieira e Fábio Comparato, por exemplo, aproveitaram a ocasião para publicar neste jornal textos sobre o tema. Foram deixados no vácuo, como tantos outros.

Presidentes do STF tratam pauta do tribunal como rascunho de seus caprichos, não como roteiro dramático das urgências constitucionais do país. Mais do que agredir a democracia e a esfera pública, viola regra constitucional que obriga motivação de atos judiciais, tanto processuais quanto administrativos (art. 93, inciso X, da Constituição). Não há poder de decidir sem fundamentar. Essa vacina contra o autoritarismo vale até para presidente do STF.

A maior semelhança entre o STF e o Congresso Nacional não é o hábito de o STF “legislar”. O exercício da interpretação constitucional, ao contrário do que se pensa, supõe o poder de colegislar. O STF não usurpa função de ninguém quando o faz. É da sua própria natureza. Pode cometer erros grotescos, claro, mas não porque “legislou”, foi “ativista” ou “usurpador”.

Se quiser traçar a linha entre “aplicar” a Constituição e “legislar”, e daí definir se o STF é ativista, boa sorte, o caminho não tem volta. Quem imagina uma fronteira fixa reservada à função judicial na separação de Poderes está mal informado na teoria, na prática e na história.

Mais produtivo perguntar como, quando, quanto e por que um tribunal constitucional pode colegislar. A análise fica mais afiada, ganha contexto, presta atenção no procedimento e na qualidade dos argumentos. Escapa, enfim, do slogan impressionista, preguiçoso e sumário.

Mas o STF perigosamente se assemelha, sim, ao Congresso Nacional quando rompe com a obrigação de decidir, premissa exclusiva da função judicial. O STF não tem poder de não decidir ou de manipular sua própria pauta com o objetivo de evitar casos incômodos. Não tem o poder de escolher, entre os milhares de casos em suas gavetas, quais levar adiante e quais deixar apodrecer. Luiz Fux não é Rodrigo Maia no contrato constitucional.

O poder de julgar o que quiser, quando quiser, foi construído pelo STF à margem da Constituição e da lei. E assim nos obrigou a conviver com uma incerteza jurídica de segunda ordem: em cada caso, não perguntamos apenas “qual” será a decisão do STF (se vai respeitar precedente, se vai inovar etc.), mas “se” haverá decisão.

A próxima vez que vir um ministro do STF se reunir com executivos para uma palestra fechada sobre segurança jurídica, saiba do que estão falando. Tanto a “palestra” quanto a ideia de “segurança jurídica” são eufemismos para outra coisa.

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