Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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Conrado Hübner Mendes
Descrição de chapéu Folhajus

21 técnicas de matar em silêncio

Não há opacidade nas engrenagens de morte turbinadas por Bolsonaro

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Pode-se avaliar uma decisão de governo ou política pública pelo quanto ela mata. Não mata só por efeito colateral, por cálculo equivocado de riscos, por escolhas trágicas de custo-benefício que buscam mal menor.

Não mata só em cadeias causais intrincadas, multifatoriais e demoradas. Mata em relações simples, rápidas e palpáveis de causa e efeito, mata por opção deliberada pelo mal maior ("maior", claro, se a ordem de valores der algum peso à vida).

Bolsonaro não inventou nossos dispositivos da morte, juridicamente facilitados e legitimados há muito tempo no estado brasileiro. A letalidade policial e a violação massiva de direitos nas prisões, sob chancela judicial, política e social, são exemplos mais gritantes de fenômeno presente em muitas áreas. Franco da Rocha e Brumadinho lembram outras.

Cemitério em Manaus (AM) em meio à pandemia de coronavírus - Bruno Kelly - 7.mai.21/Reuters

Bolsonaro alçou esses dispositivos letais a outro patamar. E também os revestiu, como ninguém antes, de verniz ideológico composto por uma versão delinquente da liberdade —a liberdade sem sociedade, sem solidariedade e sem responsabilidade. A liberdade sem outros direitos constitucionais, a liberdade para quem pode, tem força e tem sorte.

"Necropolítica", termo de Achille Mbembe, oferece conceito possível para mostrar essa faceta mal disfarçada da ação e omissão estatal. A habilidade de "ditar quem pode viver e quem deve morrer" abrange desde reformas de redução da proteção social até ações mortíferas mais diretas.

O termo se disseminou quando figura tão visceralmente ligada à morte virou presidente sob a promessa de incivilizar a política, desvertebrar o estado e combater a diversidade.

A moldura da "necropolítica", porém, talvez seja ampla demais para salientar especificidades do atual governo, mostrar o que Bolsonaro somou de distinto em qualidade e intensidade.

"Democídio" seria um candidato conceitual alternativo. Foi adotado na literatura em dois sentidos: alguns autores o definem como atos estatais que matam cidadãos (Rummel, "Death by government"); outros usam o termo como sinônimo de "matar a democracia" (Keane, "To kill a democracy").

A ambiguidade, curiosamente, ajuda a descrever autocratas, pois costumam matar gente e também a democracia. Democidas no duplo sentido.

Poderíamos também recorrer, como metáfora, às técnicas orientais de assassinato instantâneo, sem alarde e ostentação, que o livro "21 técnicas de matar em silêncio" busca sistematizar. Decisões do governo mataram por muitas dessas técnicas, dentro e fora da pandemia. Um pouco de atenção à ciência e ao jornalismo permite construir rapidamente uma lista de 21 exemplos.

Na pandemia, essas ações mataram: 1) oposição a medidas sanitárias de senso comum (como distanciamento e máscara); 2) campanha por tratamentos alternativos ineficazes; 3) aplicativo que receita cloroquina até para dor de barriga (TrateCov); 4) incentivo à aglomeração para, a despeito de mortes evitáveis, acelerar imunidade coletiva; 5) assédio contra médicos para adoção de protocolos eivados de charlatanismo.

No tema da vacina: 6) atraso deliberado na compra de vacina; 7) campanha de desinformação sobre eficácia da vacina; 8) distribuição falha de vacina; 9) atraso da vacinação infantil já aprovada por órgãos técnicos; 10) nota técnica ministerial afirmando eficácia da cloroquina e ineficácia da vacina; 11) portaria ministerial que, contra a lei, defende vacinação facultativa de crianças e se opõe a passaporte vacinal.

Mas matar em silêncio também transcende à pandemia: 12) encerramento do programa Mais Médicos; 13) fechamento do Departamento de AIDS; 14) criação de empecilhos ao aborto legal e à saúde reprodutiva da mulher; 15) incentivo, contra a lei, ao armamento da população; 16) revogação de normas de segurança no trabalho e redução da fiscalização; 17) anistias a grileiros; 18) fim, na prática, da fiscalização ambiental.

Mata-se também por intoxicação: 19) garimpo que despeja mercúrio em rios na Amazônia; 20) liberação de agrotóxicos que contaminam a água; 21) continuidade da extração de amianto para exportação. Sequer entramos nas políticas de aprofundamento da desigualdade e da pobreza, pois criam ruídos ideológicos desnecessários para detectar a malignidade singular do governo Bolsonaro.

O elo entre comportamento de autoridade individual e a consequência letal, nesses exemplos, não é complexo nem opaco. Não é multivetorial nem multiautoral. Não é produto de inépcia. Dispensam investigações preliminares ou equipamento intelectual acima da média. Os arquitetos da irresponsabilização jurídica fazem parte do mesmo time.

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