Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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Descrição de chapéu Folhajus

Dois bolsonaristas pedem minha prisão

Aras e Marques representam, na minha vida, o que Bolsonaro pode fazer com a sua

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Augusto Aras e Kassio Nunes Marques pedem minha prisão. Eventual condenação, somados os casos, pode alcançar mais de 10 anos de detenção. O cálculo considera a pior hipótese permitida no Código Penal. Improvável, dizem advogados. Talvez cinco ou seis anos. Não tão improvável com Bolsonaro reeleito e a virtual cooptação definitiva de um judiciário menos conhecido pela integridade que pela autoadmiração e vocação colaboracionista.

Cada um vive o risco Bolsonaro a sua maneira. Eu vivo com dois processos criminais sobre minha cabeça. Lançados pelas duas maiores autoridades jurídicas do país: o procurador-geral da República e um ministro do STF. Dois bolsonaristas sanguíneos. O soldado e o cabo. Prometeram ao presidente postura bovina e cumpriram, com os efeitos letais que ajudaram a causar. Irremediavelmente.

O procurador-geral da República Augusto Aras com o presidente Jair Bolsonaro (PL) - Ueslei Marcelino - 10.mai.21/Reuters

Por que pedem prisão? Porque julgam criminosas duas colunas escritas aqui. Por palavras que teriam afetado a "trajetória de vida imaculada", disse Augusto. "Omisso", "poste" e "chicaneiro" foram elas. Um jargão corriqueiro. Palavras que não entram nem no glossário da grosseria e da galhofa. E não fazem justiça, nem conceitual nem literária, à gritante atuação dos imaculados.

Querem prisão de professor universitário em razão de palavras antipáticas sobre o desempenho ostensivamente maculado desses homens sem qualidades. Ignoram lições da decência, do direito constitucional e penal. Não existe direito de não ser criticado, nem direito de não se sentir ofendido. A autoestima de autoridade pública não é protegida pela lei.

Por essas e outras, para mim se tornou impossível falar de Bolsonaro em abstrato. Ou apenas por meio de números e índices socioeconômicos, já graves o suficiente. Deveria ser difícil para qualquer um, exceto o cientista político que, entre baforada e outra de charuto, mirando o Pão de Açúcar de sua janela, pondera diante de suas planilhas sobre instituições funcionando. E saca a tirada orgulhosa "democracia corre risco zero". Um frasista.

Quando um amigo, um tio, uma prima mergulha nessa vertigem desumanizadora e subscreve o horror, um laço profundo de comunidade afetiva se rompe. Como sentar à mesa e celebrar algo juntos? Não é porque votam indiretamente pela minha prisão, mas algo mais inexplicável. Às vezes irreversível.

Ainda não descobri como expressar esse sentimento. E o que fazer com ele. Há certas coisas que presumimos compartilhar em silêncio. Depois que um presidente ironiza pessoa agonizando com falta de ar, não deveria ser necessário dizer mais nada. Vou lhes poupar de outros 150 exemplos. O curriculum vitae do inumano está na coluna anterior.

Que essas investidas criminais interfiram na minha vida pessoal, profissional e material, é problema menor. Mas o meu risco é também o seu risco.

Vivo com o medo da cadeia por ser professor. Outras vivem sob ameaça de estupro e de morte. Como Natalha Theofilo, mulher negra na Amazônia, exilada em seu país para manter viva sua família (veja sua carta no jornal Sumaúma); como Debora Diniz, antropóloga que foi morar no exterior para não ser morta pelo fundamentalismo religioso; como Patrícia Campos Mello e Constança Rezende, repórteres dessa Folha.

Outros levam tiro, como os dois policiais federais baleados por Roberto Jefferson. Atentado com selo bolsonarista oficial. Outros morrem em festa de aniversário, por ostentarem identidade política.

Com a disseminação das armas, seus filhos também podem ser vítimas de atentado na sala de aula, por exemplo. Aluno de escola tradicional paulistana planejava ataque a tiros dias atrás, depois de decepção amorosa. Com arma do pai. Por sorte não executou.

Todos os casos são parte de um programa de governo, não da violência brasileira cotidiana. E não é só isso. Não importa só saber o que Bolsonaro pode fazer com a minha vida, a sua e a do seu filho. Importa saber o que pode fazer com a nossa. A incivilidade, a pobreza e o colapso climático sempre chegam aos nossos condomínios fechados.

O que se perde quando se perde a democracia? Perde-se além dos bons negócios. Perde-se, por exemplo, o direito e o poder de se autogovernar. Isso que "se perde" muita gente nunca teve, verdade. Se esses valores são etéreos demais para quem nasceu e cresceu no camarote da sociedade brasileira, como eu, e se sente livre o suficiente, bom lembrar que também se perde capacidade de realizar seu autointeresse, seu plano de vida. Um objetivo liberal.

Ninguém tem direito de estar mal-informado. Porque isso implica cumplicidade. Quando o outro lado quer sua eliminação, não adianta pedir empatia e paz no coração.

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