Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris
Descrição de chapéu Copa do Mundo

Uma vitória republicana na Copa

Estaríamos no toró abraçando jogadores suados ou sob um guarda-chuva?

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Ilustração
Mariza Dias Costa/Folhapress

A final entre França e Croácia foi bonita —um jogo de gente grande. Sem simulações excessivas, chiliques etc.

Mas o melhor foi a hora da premiação. Já durante o jogo, a TV mostrara Kolinda Grabar-Kitarovic, presidente da Croácia, e Emmanuel Macron, da França. Os dois torciam cada um pelo seu time, mas a relação era amistosa. No fim, desceram para o gramado de mãos dadas.

Grabar-Kitarovic foi para a Rússia em voo comercial, pagando de seu bolso e descontando os dias de folga de seu salário (a viagem, segundo ela, não era trabalho). Ela ficou nas arquibancadas, com a torcida croata; nas quartas de final, foi identificada, e a Fifa pediu que ela fosse para a tribuna de honra.

Nota: o Brasil pensa diferente, certamente por ser um país muito rico: entre governo federal e empresas públicas, foram à Rússia 43 pessoas "a trabalho" (técnicos e jogadores não estão incluídos nesse número).

Voltemos: Grabar-Kitarovic, que já foi embaixadora em Washington, ministra para a Integração Europeia e ministra das Relações Exteriores de seu país, despertou em mim a vontade de passar umas férias na Croácia, que tem uma costa linda e uma capital maravilhosa, Zagreb.

O nosso ministro do Turismo esteve na Rússia; não sei se foi do bolso dele, mas sei que ele foi ouvido: declarou que os torcedores brasileiros zoando mulheres russas eram só moleques. Aposto que não despertou em um só russo a vontade de vir ao Brasil.

Emmanuel Macron foi para a Copa com mais pompa do que Grabar-Kitarovic. Mas gostei de sua aparição: 1) porque o "vive la France" dele é sempre acompanhado por um "vive la République" —como se o país merecesse um salve só pelos valores republicanos, que ele representa mundo afora; 2) porque ficou embaixo de um toró, ao lado da presidente croata, abraçando cada jogador da Croácia e da França como se a chuva fosse irrelevante.

Falando em chuva, eis um teste para saber em que regime político você vive. Se a chuva vem, e o primeiro guarda-chuva que aparecer for para proteger o chefe de Estado (como aconteceu com Putin), pode-se concluir que o tal chefe de Estado está perto de ser um ditador, pelos privilégios que ele se outorga ou (pior) pelo medo que ele incute em seus subordinados.

Como se comportariam nossos presidentes? Na chuva abraçando os jogadores suados ou no guarda-chuva de Putin? Ou em qual solução intermediária entre essas duas possibilidades?

Mais coisas sobre a Copa.

# Disse que a final foi um jogo de adultos. De fato, houve pouca choradeira ou imprecação contra o árbitro. Em geral, o primeiro passo para "melhorar" consiste em parar de acusar os outros. Isso vale no futebol assim como na vida do país, em que a tradição nacional é a de culpar a todos salvo a gente.

# Na mesma direção: mais de uma vez, nos jogos, pareceu-me que, ao entrar na área adversária, os passes de nosso ataque serviam sobretudo para os jogadores evitarem a responsabilidade de finalizar. O ataque parecia fracassar porque nenhum atacante queria correr o risco de errar. O jogo era: deixar qualquer culpa eventual para os outros (inclusive os outros do meu time).

# Depois do 7 a 1 de 2014, escrevi uma coluna com o título "O Brasil ganhou a Copa". A vitória do Brasil estava, ao meu ver, no fato de ter perdido sem que isso fosse uma tragédia. Essa ideia continua valendo. Desta vez, assisti ao jogo com a Bélgica com toda a equipe de "Psi", o seriado da HBO do qual sou diretor-geral: paramos de trabalhar e fomos para um bar. Claro, torcemos. Mas sabe o quê? Perdemos, e eles ganharam. Pena, valeu.

# Durante muito tempo, a gente achou que o talento no futebol era uma matéria-prima exclusivamente brasileira. As matérias-primas nunca são um bom negócio: o que vale é o que a gente faz com elas. Olhe só, somos grandes produtores de cacau, empatamos com a Suíça e perdemos da Bélgica, países que não têm cacau, mas são potências do chocolate.

# Ouvi dizer que "perdemos a Copa". É bizarro: é possível perder um jogo ou outro. Quanto à Copa, é apenas possível não ganhá-la.

Ou, então, será que 31 times perderam a Copa? Eu diria que eles não a ganharam. Só da Croácia podemos dizer que perdeu a Copa, porque perdeu a final.

Conclusão: o bem-estar mental, em geral, começa com a constatação de que somos apenas uns entre outros, na vida, em campo e na Copa.

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