Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

O paradoxo Bolsonaro

Ele, afinal, quer que o Estado se meta ou não se meta na vida dos cidadãos?

ilus contardo
Mariza Dias Costa

Tenho uma tremenda antipatia por todo poder que queira se exercer sobre mim e sobre meus próximos.

Por isso mesmo, não precisei da corrupção nem da Lava Jato para ter uma desconfiança radical dos políticos profissionais. Desconfio deles não porque eles se venderiam a interesses escusos, mas porque, mesmo honestos, sempre me parecem ter o desejo ou projeto de governar os outros --e, portanto, de me governar.

Essa constituição anárquica do meu caráter faz com que eu não goste do poder do Estado, seja ele "democrático" ou não, e que eu goste ainda menos de todas as instituições que tentam nos impor regras de vida —como elas dizem sempre: "para o nosso bem".

Concordo com Ronald Reagan: para mim, o Estado é mais um problema do que a solução.

Obviamente, a vida social seria impossível sem um mínimo de respeito por regras comuns. É na necessidade dessas regras básicas que se funda a legitimidade do Estado e, em geral, do poder. Exemplo: seria difícil circular e sobreviver mais um dia sem o Código de Trânsito.

Em suma, há uma (pequena) lista de poderes que me resigno a delegar. Desde que vivo no Brasil, aliás, essa lista diminui, porque, qualquer brasileiro concordará, a capacidade de o Estado fazer o trabalho que lhe delegamos parece cada vez mais duvidosa.

Um exemplo interessante é a segurança pública. O trabalho do Estado nesse campo é cronicamente pífio e não acredito que melhore tão cedo. Para minha segurança, prefiro mesmo que seja permitido me armar (claro, para qualquer anarquista, alérgico aos excessos do poder, as armas prometem também a segurança de conseguir se revoltar contra o poder central).

Enfim, menciono essas partes obscuras de meus pensamentos (que muitos amigos supostamente de esquerda estranharão) para explicar que, procurando bem, consigo encontrar, nas falas do candidato Bolsonaro, alguns memes que não desprezo.

Claro, ele é um homem político tradicional, e eu não confio, como disse, em homens políticos tradicionais (ainda menos em famílias de políticos). Ele fez a apologia de torturadores e isso me dá um pouco de nojo, junto com a vontade de me situar do lado de quem se rebelou e está sendo ou foi torturado.

Mesmo assim, o pouco que se sabe dos planos econômicos ultraliberais de Paulo Guedes não me indigna completamente. Privatizações, simplificação tributária, reforma da Previdência, desregulamentação se dariam provavelmente para enriquecer os mais ricos, mas todos, ricos e pobres, teríamos disso um benefício comum: o de ver o Estado encolher.

O liberalismo (ultra ou não), afinal, tem algo em comum com o anarquismo: ambos celebram o indivíduo e sua liberdade como valores supremos.

Até aqui, então, nada paradoxal: Bolsonaro pareceria ter expressado uma aspiração libertária e anarquista do eleitorado brasileiro cansado do Estado de sempre. E ele estaria cogitando planos econômicos que possam respeitar essa aspiração.

Mas a coisa complica quando os memes ultraliberais, que podem expressar uma aspiração libertária, são acompanhados por um moralismo (sexual, por exemplo) que, ao contrário, quer controlar ao máximo a vida concreta das pessoas. Talvez esse moralismo seja instrumental, ou seja, tenha sido necessário para conquistar os pastores evangélicos e seus fiéis.

Mas talvez ele não seja fingido. Talvez Bolsonaro, um pouco como foi o caso de Pinochet no Chile nos anos 1970, seja essa contradição: libertário e contra o estadismo em economia, mas moralista e conservador em matéria de vida privada, ou seja, preocupado em governar e regrar o comportamento dos outros.

Ao percorrer as falas de Bolsonaro e de seus aliados, dá vontade de observar: em regra (até por coerência) quem gosta de controlar sempre tenta controlar tudo. O Estado comunista, por exemplo, foi (e é, onde sobrevive) um controlador da vida privada que só se compara com os Estados religiosos. Bolsonaro, afinal, quer que o Estado se meta ou não se meta na vida dos cidadãos?

E, se há um anseio de controle que convive (não se sabe bem como) com um anseio libertário, sobre o que tentará exercer prioritariamente seu controle um eventual governo Bolsonaro?

Sobre o pensamento político? A imprensa? A liberdade de expressão? As artes? O direito de se reunir? Desde já uma dica (sobre a qual voltarei): a vontade de controlar a vida concreta sempre começa pela vontade de controlar o desejo feminino.

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