Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

A sanha missionária

A intolerância está no âmago de nossa cultura, é um vício propriamente cristão

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De onde vem a vontade de se meter na vida concreta dos outros e de exigir que eles todos adotem nossas regras de conduta?

Tudo bem, há uma explicação básica para esse fenômeno. Muitas pessoas erigem suas preferências em princípios universais porque é o melhor jeito que elas encontram para se policiar. Assim, tenho uma tremenda vontade de servir de capacho numa sauna gay, mas não quero (porque estou com medo, porque sou avô etc.): a solução é fechar todas as saunas gay, de tal forma que esses gays do c... não me apareçam mais pela frente —ainda menos em sonhos (eróticos).

Apesar dessa explicação, que não se desmente, eu continuo achando, a cada vez, surpreendente essa vontade e esse esforço para regrar a vida dos outros.

O respeito das diferenças era o âmago da minha criação. A gente aprendia isso nas conversas de mesa. Exemplo.

Ilustração
Luciano Salles/Folhapress

Em 1960, assistimos em família a um filme tchecoslovaco, em italiano "Il Principio Superior", de J. Krejcik. No fim do filme, um professor fala para seus alunos, alguns dos quais, resistentes contra a ocupação nazista, estão sendo fuzilados: "Em nome de um princípio moral superior, o homicídio de um tirano não deve ser considerado como um assassinato". A frase foi o tema de uma conversa de mesa que durou dias e incluiu uma leitura de "Júlio César" de Shakespeare. Qualquer posição, se for argumentada, era aceita e respeitada (naquele caso, eu defendi Bruto).

A única coisa que não era respeitada era a intolerância —pelas opiniões discordantes e por tudo o que fosse diferente da gente. Bastava uma piada sobre judeus, mulheres ao volante, "afeminados", chineses etc. para que baixasse a punição. Nada físico: quase sempre, ler um artigo de Norberto Bobbio e resumi-lo no almoço seguinte (aos 12 ou 13 anos, era dureza).

Justamente, Bobbio se definiu sempre como "um homem da dúvida e do diálogo". Na mesa de casa, a incerteza era a virtude moral, enquanto a certeza era um vício reservado aos loucos, aos cretinos e, naturalmente, aos inimigos.

Enfim, cheguei à idade adulta convencido de que o respeito pela diversidade estava na matriz do espírito moderno, desde seus primórdios cristãos, 20 séculos atrás.

O cristianismo promoveu a ideia de que somos todos filhos de Deus e iguais perante a ele e perante a lei —sejam quais forem as diferenças de credo, língua, etnia, orientação sexual etc. Por isso eu imaginava que o respeito pelas diferenças fosse uma virtude cristã —implícita, aliás, no famoso "ama teu próximo como a ti mesmo".

Pois é, ledo engano. Estou estudando os três primeiros seculos do cristianismo, de Paulo ao Concílio de Niceia. Primeira descoberta: minha visão do cristianismo como uma religião tolerante e precursora do caminho das Luzes era totalmente errada.

Muitos historiadores tentam entender como, em três séculos, o cristianismo primitivo (25 pessoas, em Jerusalém) conquistou a metade do Império Romano. Discute-se sobre os fatores decisivos para essa expansão, mas a tolerância nunca é um deles.

O Deus cristão, como o Deus dos judeus, é exclusivista: "Não terá outro deus fora de mim". Isso era bizarro para os pagãos, acostumados com a coexistência de muitos deuses, inclusive na sua própria devoção.

Agora, à diferença do Deus dos judeus, nunca missionários, o Deus cristão fazia da conversão do próximo uma missão: se Cristo deu a sua vida para nos redimir, como a gente não seguiria seu exemplo? Ou seja, precisamos levar o outro (ou forçá-lo —tudo pela sua salvação, claro) a aceitar Cristo.

O cristianismo nasce e se afirma como uma religião essencialmente missionária —exatamente como o Islã, 600 anos depois. A "guerra santa" de conquista, assim como a vontade de reduzir a escombros o espírito e as terras conquistadas, tudo isso não é mais islâmico do que cristão.

Você se indignou quando os Talibãs ("selvagens") destruíram os Budas de Bamiyan, no Afeganistão, em 2001. Pois bem, você acha que as estátuas gregas e romanas que estão nos nossos museus perderam seu nariz por alguma rinite do mármore? Ou porque o nariz é a coisa mais fácil de quebrar com um martelo (cristão)?

Conclusão, sem a qual não vamos entender os dias de hoje: a intolerância, na cultura ocidental, não é uma exceção nem uma volta às trevas. Ela está desde o começo no âmago de nossa cultura porque é um vício (apenas oculto) propriamente cristão.

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