Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris
Descrição de chapéu

Fundamentalismos às portas?

A reação moralista é uma resposta à modernização dos costumes

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Michel Foucault passou algumas semanas no Irã no fim dos anos 1970, quando o regime do xá Reza Pahlavi estava nas últimas —pelo estado de saúde periclitante do soberano e por ser um regime repressivo e odiado pela maioria. 

Na época, a esperança de revolta se confundia com um apelo à religião tradicional, o islã xiita, que o xá combatia. Foucault escreveu dois textos, digamos, favoráveis à revolta e ao islã —textos que muitos intelectuais europeus acharam desastrosos e cujo “otimismo” foi desmentido quando se instaurou, no Irã, um regime fundamentalista tão sanguinário quanto o do xá.

Ilustração
Luciano Salles/Folhapress

Eu estive no Irã em 1967. Percorri o país de carro. Tabriz, Teerã, para o sul até Isfahan e Shiraz, e para o norte até a fronteira com o Afeganistão.

Na costa do mar Cáspio, tive um acidente. Acabei numa delegacia de polícia, onde recorri à linguagem universal: assumi a culpa e ofereci US$ 200 para o outro motorista. 

Na tal delegacia, uma porta se abria para um porão escuro e fedorento, no qual quatro homens, sujos de sangue, estavam gemendo, acorrentados às paredes. Talvez fossem criminosos. Ou talvez islamistas presos por suas crenças. No Irã, não era bom ser do contra.

O xá queria modernizar o país. Ele ocidentalizava a ferro e fogo. Era difícil não simpatizar com qualquer coisa que hostilizasse o regime do xá.

No fim dos 1970, no Irã, Foucault constatou então que a revolta seria religiosa. O islã seria o cimento da “vontade geral” do povo e forneceria a energia “espiritual” necessária para uma revolução.

Agora, a “vontade geral” sonhada por Rousseau nunca é tão geral assim. Justamente no fim dos 1970, em Paris, eu encontrava colegas iranianos e afegãos, psiquiatras, que completavam sua formação na École Freudienne. Estas vozes, Foucault não ouviu: médicos, de classe média, laicos, ocidentalizados, mas horrorizados pelo governo do xá e ansiosos por democracia.

Nos relatos de Foucault, parece que ocidentalizados eram só ricos, sedentos por lucros e cúmplices do xá.
Acabo de ler “O Enigma da Revolta” (N-1 Edições, org. Lorena Balbino). São duas entrevistas de Foucault em 1979, inéditas desde então e prodigiosamente interessantes. O foco são os artigos que Foucault escrevera sobre o Irã e as críticas que ele recebera.

Como lembra Christian Laval no posfácio, Foucault não era marxista; seus filósofos preferidos eram Nietzsche, Maurice Blanchot e Georges Bataille.

Foucault tinha simpatia pelos revoltados porque a revolta lhe parecia ser o jeito para conseguir ser, agir e pensar fora do quadro imposto pelo conjunto de preconceitos, hábitos, mandamentos do momento e do lugar onde vivemos. A revolta é a tentativa de sermos um pouco outros; ela pode ser coletiva, mas é, antes de mais nada, uma experiência interior.

Melhor dito, uma revolta só tem uma chance de mudar o mundo à condição de ser primeiro uma mudança interior  —Foucault diria “espiritual”. Até aqui, tudo bem. 

O filósofo, entusiasmado com o clima de revolta no Irã, parece acreditar que o islã pudesse fornecer a “energia espiritual” necessária para cada um se tornar outro.

O problema é que as revoluções, em geral, podem até começar com o projeto de cada revolucionário se transformar (tornar-se outro), mas quase sempre acabam com os ditos revolucionários querendo impor aos outros a mudança que eles não conseguiram efetuar neles mesmos.

Aconteceu com as revoluções comunistas. Aconteceu com a Revolução Francesa e o Terror que ela instaurou. E só pode acontecer com revoluções inspiradas em religiões que são animadas por uma tremenda sanha missionária, como a cristã e a islâmica. Por serem incapazes de se transformar eles mesmos, os “revolucionários” se tornarão, sempre, carrascos de dissidentes, heréticos ou descrentes.
Uma crença que tenha uma sanha missionária não deveria nunca ser autorizada a se tornar princípio de uma revolta ou de um governo.

O Irã, em 1979, reagiu contra uma modernização forçada e afundou num fundamentalismo sanguinário e liberticida. 

Hoje, a reação moralista e religiosa no mundo ocidental também é uma reação contra uma modernização dos costumes que, desde os anos 1960,  parecia ter ganho espíritos e mentes, mas que, de fato, 
para muitos, continuava e continua indigesta. 

Mais uma razão para ler, com urgência, “O Enigma da Revolta”: os mulás talvez não estejam tão longe de nós.

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