Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

A sanha legisladora

Melhor seria que a lei enunciasse princípios e deixasse que os juízes os aplicassem

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É possível que sua vida concreta, algum dia, esbarre na lei. Há muitas condutas que poderão lhe ser ditadas pelos afetos ou pela razão e serão eventualmente proibidas pela lei instituída.

Por exemplo, você mal tem 15 anos e ama alguém que tem pouco menos de 14. Vocês morrem de vontade de tirar a roupa e descobrir o que acontece entre dois corpos que se desejam. Se isso ocorrer, 
você será acusado ou acusada de estupro de vulnerável. 

O Ministério Público explicará que não tem nada que possa ser consensual com alguém menor de 14 anos —essa é, no Brasil, a idade a partir da qual se considera que alguém possa consentir em fazer sexo com outro.

Note-se que o limite de 14 anos não foi inventado por esquerdistas corruptores de crianças: ela está no Código Penal de 1940. Quem não gostar ligue para Getúlio Vargas.

Então, alguém se indignará, você quer baixar esse limite que já está baixo?

Não quero baixá-lo. Tampouco quero elevá-lo. Eu preferiria que esse limite simplesmente não estivesse na letra da lei. 

Como saberíamos, então, quando há estupro de vulnerável? Pois é, não saberíamos de antemão —só depois, e nossa resposta provavelmente seria diferente em cada caso.

Ilustração de Luciano Salles para coluna de Contardo Calligaris de 5.set.2019.
Luciano Salles/Folhapress

A vida concreta é complexa demais para ser regrada por normas positivas detalhadas. É óbvio que há pessoas de 13 anos que são menos vulneráveis do que seu companheiro de 15 ou 16. Também, que sentido tem a ideia que na véspera do aniversário é estupro e no dia depois já não é mais?

Preferiria que a lei se contentasse em enunciar princípios e deixasse aos juízes a tarefa de aplicá-los em cada caso. O princípio diria que sexo com vulnerável é estupro. Agora, decidir quem é vulnerável o juiz faria diante do caso concreto.

Você receia que os preconceitos dos juízes tenham consequências piores do que
o caráter arbitrário da lei? 

Discordo. 1) O juiz lida com o concreto, o legislador, não —e essa é uma garantia moral mínima. Além disso, é mais fácil formar juízes do que corrigir leis abstratas —e por isso mesmo arrogantes. 2) A sanha legisladora é profundamente imoral: ela serve para evitar as questões autenticamente morais, que, sempre concretas, são os pontos em que devemos engajar nossa responsabilidade e nunca sabemos como. 

Nos Estados Unidos, desde a “guerra contra o crime” dos anos 1990, quem reincidia duas vezes, tendo cometido ao menos um crime que valesse dez anos de cadeia, ia preso para sempre —sem condicional. No papel, parece uma boa lei: vamos tirar de circulação os contumazes.

Por essa lei, Alvin Kennard cumpriu 36 anos de cadeia por assaltar uma padaria de faca na mão e roubar US$ 50 e uns quebrados. Isso por ser reincidente, embora seus crimes anteriores não fossem violentos. Quem soltou Alvin foi um juiz, opondo-se à lei.

A deputada estadual Janaina Paschoal, certamente bem intencionada —os legisladores quase sempre são—, propôs uma emenda para impedir o bloqueio hormonal de jovens transgênero antes da puberdade e também para impedir operações de mudança de sexo antes dos 21 anos.

Quer saber se sou a favor do bloqueio hormonal num jovem pré-púbere que se diz transgênero? Ou se sou contra ele? Acho ridículo responder. Os profissionais mais qualificados, por sua experiência, levam anos para chegar a uma opinião, que é diferente em cada caso. 

De qualquer forma, o legislador, antes de pretender decidir com um canetada, deveria se debruçar sobre a história de um menino que usa às escondidas os anticoncepcionais da mãe e da irmã na esperança que contenham o hormônio feminino que ele quer, ou a de outro, que compra (e paga em sexo oral) injeções de hormônios ilegais, provavelmente adulteradas.

Quanto à operação, a emenda é inútil: o Conselho Federal de Medicina já prevê que cirurgias de mudança de sexo sejam acessíveis só depois dos 21 anos de idade. De qualquer forma, trata-se de uma regra abstrata e, por isso mesmo, para mim, sem valor moral. 

Preferiria um critério concreto: que antes de se operar, por exemplo, um ou uma jovem trans tente viver uma vida afetiva e sexual ativa durante alguns anos para descobrir se existe, nas tramas amorosas do mundo, um lugar frequentável e prazeroso para ela ou para ele, num dos vários gêneros e sexos possíveis.

Moral da história: a ideologia nos torna burros e insensíveis. Ela nos encoraja a legislar para fugir da incerteza inevitável de qualquer escolha moral.

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