Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris
Descrição de chapéu Coronavírus

Quais os efeitos do coronavírus na cabeça da gente?

Patologia não está no suposto pânico causado pela doença, mas na negação da pandemia

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Não param de me perguntar quais são os efeitos da pandemia na cabeça e no comportamento da gente.

Em geral, a pergunta já contém a resposta esperada: o que você pensa do “pânico”, que está se apoderando de nossas mentes?

Se faço de conta que não entendo, meus interlocutores acrescentam “o pânico nos supermercados, com o pessoal estocando desde álcool até papel higiênico”.

O fato é que não vejo nem escuto pânico algum, nem no consultório (nota: meus atendimentos são hoje online, à distância) nem nas ruas. Estocar me parece razoável para quem se prepara para um longo período em que ficar em casa será o jeito de se resguardar.

Ilustração mostra presidente Bolsonaro em manifestação, ele está fazendo selfie com um celular, usando um chapéu em fomato de vírus. Ao fundo, manifestantes sorridentes fazem pose para a foto.
Ilustração de Luciano Salles para coluna de Contardo Caligaris de 19.mar.2020. - Luciano Salles

A patologia, neste começo de pandemia, não está no suposto pânico mas na negação do que está acontecendo, que se dá de várias maneiras.

Um exemplo explícito: um bispo declara que o vírus é simpático e irrelevante, enquanto o medo do vírus é coisa de Satanás. Por que ter medo, com efeito?

Desde a primeira grande peste moderna no Ocidente (1347), e talvez já antes, na peste dita de Justiniano (541), sempre houve mentecaptos para pregar que a pestilência era mais uma praga, tipo as pragas bíblicas do Egito, para humilhar os falsos deuses e mostrar o poderio do Deus do Antigo Testamento. Portanto, não temam o contágio, meus irmãos, só venham para a igreja.

Na hora do medo, há os que compram álcool em gel para revendê-lo a preços absurdos no Mercado Livre ou na Amazon. E há os que oferecem explicações da pestilência segundo as quais a proteção divina é garantida a quem segue a reta via. O mapa está à venda na saída do culto.

Outro exemplo de negação nos foi oferecido pelo presidente do Brasil, que se comportou como um garotão, o que o tornaria até simpático, se ele não fosse presidente. O que significa se comportar como um garotão? Significa uma insegurança radical, pela qual nada é tão importante quanto receber um aplauso.

Bolsonaro pode certamente entender os argumentos de seu próprio ministro da Saúde, mas é incapaz de resistir ao charme de um breve momento em que será admirado por um punhado de seguidores.

Para não perder esse aplauso, ele se misturou a manifestantes na frente do Planalto e assim pôs em risco a população brasiliense e brasileira. Pois, de fato, qualquer comportamento que facilite o contágio facilita e acelera o colapso de nosso sistema de saúde.

O presidente, aliás, ofereceu, nessa ocasião, um exemplo perfeito do que é um patriotismo abstrato. Pegou uma bandeira das mãos de um dos apoiadores e desfilou agitando-a. No entusiasmo infantil de ser porta-bandeira (que ele sentiu e imaginou provocar nos presentes), ele se esqueceu de que seus atos estavam pondo em perigo os seus compatriotas. Em suma, um transtorno narcisista (banal nos adolescentes, mas nem tanto num idoso) prevaleceu sobre qualquer cuidado (este, concreto) com a população brasileira.

Tão interessante quanto recensear as patologias do momento é considerar os mecanismos pelos quais nós humanos conseguimos enfrentar (e não negar) a pandemia.

Nesta última semana, os italianos, confinados em suas casas, de noite e de dia, juntos, de prédio em prédio, de janela em janela, cantaram —desde o hino nacional até canções de amor ou “Bella Ciao”.

Cantaram para passar o tempo, para matar o tédio e, sobretudo, para afirmar que o povo, embora dividido politicamente e hoje vítima de um vírus assassino, ainda consegue levantar um coro.

Isso é patriotismo, ou seja, o sentimento de um destino compartilhado. Não a patacoada com uma bandeira no meio de um contágio.

Epidemias e pandemias não faltam na história do Ocidente. O confinamento era ditado pelo bom senso, antes de ser pedido pela ciência. O “Decameron”, de Boccaccio, é um conjunto de histórias (alegres e ousadas) contadas por sete moças e três rapazes confinados durante a peste de Florença em 1348.

Infelizmente, nem todo mundo tem companheiros de confinamento tão cheios de espírito, de malícia e de vida. Mas, convenhamos, é a primeira pandemia em época de televisão e de streaming e, sobretudo, a primeira em que dispomos da possibilidade ilimitada de nos relacionar com amigos, parentes e amantes. Podemos estar isolados mas nunca sozinhos.

Os idosos, mais ameaçados pelo contágio, não devem nem sequer ser visitados, mas podemos jantar com eles a cada noite. Basta ter um computador na mesa.

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