Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

Todos os valores atrás dos quais o homem desfilou são encharcados de sangue

A tríade recomendada pelo presidente Bolsonaro (pátria, Deus e família) é de todas a mais sinistra

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A coluna da semana passada surpreendeu alguns leitores.

Só para lembrar: afirmei que é imoral agir, escolher ou votar para respeitar valores estabelecidos, sejam eles quais forem.

Portanto, é imoral encorajar os eleitores a votar nos candidatos que enaltecem valores como pátria, Deus e família. Essa tríade pode servir de exemplo porque se trata dos valores mais triviais e porque essa foi a recomendação de Jair Bolsonaro aos eleitores. Mas seria imoral da mesma forma qualquer recomendaç ão de votar segundo um valor estabelecido (que seja a solidariedade, a lealdade, o interesse próprio, o partido, o sonho do socialismo, a veneração satânica —tanto faz).

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Luciano Salles

O que é imoral não é tal ou tal outro valor. Imoral é escolher e agir em observância de um valor preexistente, seja ele qual for.

Na coluna da semana passada, usei a expressão "votar segundo consciência" como o inverso de votar segundo valores. Ou seja, votar segundo consciência seria um comportamento moral, enquanto o comportamento imoral seria escolher segundo valores (mesmo e sobretudo os valores nos quais você normalmente acredita).

Entendo que essa oposição pareça paradoxal. Como seria imoral escolher segundo meus valores? E como seria indiferente a qualidade "moral" dos valores que defendo?

A resposta é simples. Sem exceção que me ocorra, todos os valores atrás dos quais a espécie humana desfilou ao longo de sua história são hoje, por isso mesmo, encharcados de sangue de vítimas mortas ou torturadas. A tríade recomendada pelo presidente é, de todas, a mais sinistra, e deixo ao leitor a tarefa de enumerar os horrores que cada um dos três "valores" continua autorizando.

Depois de 15 séculos em que cada um agitava a bandeirinha de seus "valores" (e, amparado por eles, cometia crimes e abusos), parece que nossa cultura, no século 18, deu-se conta de que os valores são muitos, diversos, e nenhum deles é "mais moral" do que os outros.

Alguns desavisados e preguiçosos, desde então, gritam contra o "relativismo", para o qual ninguém saberia mais decidir o que é bem e o que é mal. Suspeito que esses desavisados que se indignam com o suposto "relativismo" moderno estejam sobretudo lamentando sua chance perdida de cometer atrocidades com a "boa" desculpa que eles estariam assim respeitando seus "valores".

Por sorte, não há só os preguiçosos e os que procuram desculpas por suas piores tendências. Outros, já desde o século 18, perguntaram-se como encontrar um critério de moralidade diante da variedade dos valores nas diferentes culturas e épocas.

O caminho foi longo, mas vou direto ao primeiro grande momento em que encontramos uma resposta adequada à dificuldade de conceber um critério moral digno da modernidade, ou seja, que não fosse apenas uma batalha ridícula de camisetas e bandeirinhas.

Em 1932, Jean Piaget, o grande psicólogo suíço, publicou "O Juízo Moral na Criança", em que se interessava não pelos valores supostamente morais que as crianças "aprenderiam" (ou adotariam imitando os adultos), mas pelo funcionamento do pensamento moral nas crianças.

Ou seja, uma criança podia ser cristã, umbandista, satanista, patriota ou apátrida, só preocupada em imitar os pais ou decidida a fugir de casa assim que a porta ficasse destravada, pouco importava. Piaget descobria que: 1) uma criança elabora ideias morais originais a partir do convívio não tanto com os pais, mas com os seus pares, e, mais importante, 2) a maneira de uma criança pensar moralmente amadurece passando da heteronomia (deixar que outros nos ditem "valores morais") à autonomia (decidir por conta própria o que é o bem e o que é o mal).

Um aluno de Piaget, Lawrence Kohlberg, prolongou essa descoberta inicial de maneira magistral e, no fundo, foi o único que, até hoje, conseguiu resolver para nós a difícil questão do que é moral e o que não é.

Os ditos "valores" não são morais ou imorais. Mas é moral escolher e decidir de maneira autônoma. Enquanto é sempre imoral escolher e decidir seguindo valores estabelecidos.

É incômodo? Sem dúvida. Sobretudo para quem imagina que seja possível ensinar seus "valores" às crianças. Para quem desistiu dessa ilusão e entende que ensinar a moral significa ensinar a julgar de maneira autônoma, Kohlberg é ainda hoje a referência.

Suas obras maiores não são reeditadas. Só se encontram em sebos, a preço de livros de antiquário. Por que será?

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