Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Contardo Calligaris
Descrição de chapéu casamento

É melhor casar com um conhecido ou se aventurar com um estranho?

Se temos segredos para nós mesmos, é quase impossível que não tenhamos para nossa noiva ou noivo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Quando minha avó era moça, as pessoas consumiam mais sal do que hoje —um pouco por razões dietéticas (ninguém dizia que o excesso de sal faz mal para a pressão arterial) e um pouco por razões higienistas: o sal era um grande conservador de alimentos.

As primeiras máquinas refrigeradoras, criadas por volta de 1860, funcionavam a compressão de vapor. Nada que uma família tivesse em casa.

E, mesmo depois que a energia elétrica chegou até aos domicílios, por muito tempo esfriar significava receber a entrega semanal de grandes pães de gelo, os quais bastavam para que a manteiga não azedasse. Para o resto, havia o sal. Porco no sal. Carne no sal. Manteiga no sal. Bacalhau no sal.

Nesse clima, um dos “sábios” ditados da minha avó, dizia que, antes de você se casar com alguém, era prudente os dois terem consumido juntos uma saca de sal.

Ilustração de uma pessoa com cinco bocas com as línguas para fora tocando o rosto de outra que tem cinco olhos. Há uma película esticada pela mão da primeira pessoa entre os dois. No fundo, há flores grandes com folhagens.
Luciano Salles/Folhapress

A saca de sal clássica, na época, era de 25 quilos. Se você não fosse um "salgador" compulsivo, inventando todo tipo de conserva, o que ela recomendava era que as pessoas vivessem juntas durante meses, se não anos, antes de decidirem se casar.

Fato curioso, essa prescrição não indignava ninguém —isso, numa época em que a convivência fora do casamento não era bem vista. Mas a questão que me interessa hoje é a seguinte: minha avó tinha razão? Ou seja, especulações moralizantes à parte, é melhor se juntar (ou casar, que seja) com um parceiro ou uma parceira que a gente se deu o tempo de conhecer bem? Ou mais vale se aventurar com alguém que a gente mal conhece?

Cada um desses extremos representa, de fato, uma venerável tradição cultural. De um lado, a ideia de que a convivência e o casamento devem ser decididos por razões mais sérias do que o gostar ou não gostar: casem-se pelas “boas" razões (as que importam) e, depois, virem-se, aprendam a conviver.

Nosso estado de espírito está um pouco afastado desse, mas seria desonesto descartar de antemão essa escolha que pode parecer antiquada. Até porque a outra ideia, a de primeiro conhecer (e, claro, aprovar e gostar) e depois juntar-se, não oferece garantias extraordinárias.

Essa segunda ideia triunfou há mais ou menos dois séculos atrás, com o prevalecer das trivialidades românticas (tipo, o amor é o que interessa, para o resto é só usar o cartão de crédito). Detalhe notável: parece que a gente nunca se separou tanto quanto hoje, privilegiando o “gostar" como condição prévia…

Agora, deixemos de lado as considerações de moral pública e de costumes. E pensemos apenas no prazer: qual seria a escolha mais sensata? Ou seja, o que é mais prazeroso? Juntar-se sem se conhecer previamente ou, conhecendo-se, tentar garantir de antemão uma seleção e um mínimo de compatibilidade futura?

Claro, qualquer garantia é relativa, até porque o próprio conhecimento que temos de nós mesmos é sempre deficitário e incerto.

Talvez uma maioria de homens e mulheres atravesse a vida toda sem sequer vislumbrar qual é a fantasia que comanda sua vida sexual. Nessa condição, uma pergunta: o que significaria prometer ao futuro parceiro ou à futura parceira uma sinceridade que deveria nos revelar se temos alguma chance de, um dia, conseguirmos transar juntos e não apenas aliviarmos tensões mentais e musculares numa agitação aeróbica na cama?

Talvez essa fosse a vantagem prometida a quem escolher as revelações prévias. Mas sem ilusões. Temos segredos para nós mesmos: como não teríamos para nossa noiva e nosso noivo? Ou seja, se é tão difícil se conhecer, como conseguiríamos nos revelar ao outro?

E de qualquer forma, a questão que me interessa hoje (e, claro, para a qual não tenho resposta) não é tanto sobre o que é possível enxergar e revelar —e como. Importa-me mais saber qual seria, numa vida, o caminho mais interessante, mais vivo, mais intenso.

Como foi, como era, violência à parte, a experiência de levantar o véu depois do casamento e lá, longe dos convidados, da família e da festa, começar a descobrir a alteridade do outro e quem sabe inventar as muitas ou poucas maneiras de conviver?

Essa coluna é dedicada a todas as pessoas que, surpreendidas pela pandemia, decidiram se juntar muito antes do que aconteceria em tempos normais. Sobretudo, é para aqueles que deram certo e inventaram uma vida na qual mal acreditavam. Mazeltov.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.