É crítico literário e um dos principais ficcionistas em atividade no país. Já venceu alguns prêmios literários brasileiros com o livro 'O Filho Eterno' (Record). Escreve aos domingos, a cada 2 semanas
Nem Nostradamus seria capaz de cravar o nome do próximo presidente
Vivi alguns momentos de proximidade com o poder. O primeiro deles foi um comício de Jânio Quadros em Lages, minha terra natal, em sua campanha à Presidência.
Não me recordo de nada –mas lembro que ganhei um disco de cartolina grossa acetinada, com a fotografia colorida do candidato brilhando nas ranhuras.
Eu espetava aquilo na eletrola Philips, recém-adquirida (eram os anos JK de ascensão da classe média), e ouvia maravilhado a marchinha da vassoura louvando o futuro presidente. O leitor há de convir que, aos seis anos, eu era inimputável, mas o fascínio foi legítimo.
Vânia Medeiros/Vânia Medeiros Editoria de Arte/Folhapress | ||
Como em penitência, nunca mais frequentei comícios, primeiro por soberba juvenil, mais tarde por preguiça, o que me garantiu uma boa distância do poder. Mas no final dos anos 1970, numa manhã fria, atravessando a praça Santos Andrade, em Curitiba, no caminho do meu curso de letras, percebi à frente do hotel Mabu uma movimentação de dois ou três carros negros na rua vazia, e uma distribuição geométrica de seguranças.
Na calçada em frente, parei para ver, intrigado. Súbito, surgiu da porta do hotel a figura rígida e solitária do general Ernesto Geisel, de terno e óculos escuros contra a luz da manhã. Estava a dez metros de mim, talvez menos. A cena durou uns seis ou sete segundos: ele desceu vertical as escadas, em meia dúzia de passos, e entrou num carro, onde desapareceu.
Contemplei a imagem como alguém diante de um fotograma raro de Costa-Gavras. Um segurança fixou os olhos em mim, e segui a receita clássica: me afastei não tão rápido que parecesse covardia nem tão lento que sugerisse provocação.
Depois daquele momento crucial, permaneci mais de 40 anos longe do poder, e só voltei a chegar perto, por acaso, de um ex-presidente e de um vice que se tornaria presidente. Em 2008, encontrei Fernando Henrique Cardoso na cerimônia de entrega de um prêmio a destaques do ano promovido pelo jornal "O Globo".
Eu estava lá por um livro que escrevi; ele representava sua mulher, a antropóloga Ruth Cardoso, falecida havia poucos meses.
Conversamos por dois minutos e ele foi muito gentil. Não senti desconforto: afinal, até hoje considero a criação do Plano Real e sua implementação a única verdadeira mudança estrutural do país que cheguei a viver, mas talvez só partilhe dessa opinião quem tenha arrastado a existência adulta ao longo dos intermináveis governos Figueiredo, Sarney e Collor.
Uma pena que, com a tramitação sombria da emenda da reeleição, o Brasil tenha voltado à sua tabula rasa política e preparado o terreno para o rolo compressor que viria nos governos seguintes.
Nunca vi Lula ou Dilma pessoalmente. Já me disseram que quem conversa dez minutos com Lula converte-se imediatamente ao Partido dos Trabalhadores, como Paulo na estrada de Damasco. Não tive essa oportunidade e até hoje prossigo pagão.
Quanto à Dilma, uma testemunha ocular me confessou que sua presidência tinha uma carga de eletricidade tão intensa que chegava a ser letal; acrescentou que o impeachment teria sido mais um fenômeno irresistível da física, como a gravitação universal, do que uma consequência de inabilidade política, teoria que então eu professava.
Mas quis o destino que eu chegasse perto de Temer, ainda vice-presidente –mais precisamente a uma distância de cerca de 20 metros, de onde, distraído, cheguei a fotografá-lo. Participante da comitiva dos escritores que compareceram à Feira do Livro de Frankfurt em 2013, em que o Brasil era o país homenageado, circulei pelo auditório dos discursos de praxe com uma máquina fotográfica à mão, minha defesa psicológica em terra estranha.
Temer, representando o país, subiu ao palco e contou à plateia de 2.000 editores, livreiros, agentes literários e escritores do mundo inteiro que, sim, ele publicara um livro de poesias, mas que a crítica não havia falado bem da obra. Em seguida, com um sorriso maroto, ergueu o dedo e arrematou: "Também não falaram mal!". Discursava com a vivacidade audaz e sagaz de um bom vereador.
Hoje, nem Nostradamus seria capaz de cravar o nome do próximo presidente da República. Caipira escolado, vou tentar manter minha distância segura de sempre, seja lá quem for o eleito.
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