Cristovão Tezza

Ficcionista e crítico literário, autor de “O Filho Eterno” e “A Tirania do Amor”.

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Cristovão Tezza
Descrição de chapéu

O sentido do absurdo

Kafka obriga leitor a se transformar em psicanalista e oferecer interpretação ao paciente que o enfrenta

 

Ilustração da coluna Cristovão Tezza
- Vânia Medeiros

"O mal da ficção é que ela faz sentido demais. A realidade nunca faz sentido." Lembro dessa frase de abertura da novela "O Gênio e a Deusa", de Aldous Huxley (1894-1963), que li há várias décadas e que ficou martelando na minha cabeça, mais do que qualquer outro detalhe do livro. Recordo vagamente que se trata de um cientista de gênio apaixonado pela mulher, paixão que, como todas as paixões literárias, vai acabar mal.

A afirmação é um típico paradoxo da ficção, porque, afinal, o que a narração conta seria, supostamente, algo real; portanto, a se acreditar no que diz, não faria sentido.

Um sentido que, afinal, é garantido e amarrado pela própria narrativa ficcional.

Bem, escrever é "criar sentido": pegamos os cacos da realidade, que não falam sozinhos, e propomos uma hipótese existencial e um sentido ao leitor, sob o código comum da linguagem e as convenções de gênero (realismo, fantasia etc.).

Para isso, empregamos recursos de coerência, causa e efeito, consistência ou o que quer que o nosso senso social básico entenda por "pé e cabeça", "lógica", ou "regras do jogo", de acordo com a intuição imediata da vida cotidiana.

É um processo movediço: a literatura sempre estratifica novos sentidos do tempo presente, reformulando os sentidos envelhecidos.

São mudanças parciais e gradativas, porque o sentido é sempre uma entidade social, e não uma propriedade individual, com o qual eu possa fazer o que quiser.

Mas será mesmo assim?

A pergunta me ocorreu ao ler uma antologia de textos de um escritor que entrou no século 20 virando de cabeça para baixo o próprio conceito de "fazer sentido". E de uma forma tão profunda e socialmente enraizada que seu nome criou um adjetivo para designar tudo que "não faz sentido", tudo que é absurdo: kafkiano. Trata-se, é claro, de Franz Kafka (1883-1924), e o livro, que acaba de sair, é "Blumfeld, Um Solteirão de Mais Idade e Outras Histórias" (Civilização Brasileira; organização, tradução e posfácio de Marcelo Backes).

É particularmente interessante porque flagra um Kafka menos conhecido, com alguns textos inéditos em português, num conjunto que vai de sua primeira fase até o seu último conto escrito ("Josefine, A Cantora" ou "O Povo dos Camundongos"), de modo que o leitor pode entrar neles de uma forma mais crua do que alguém que abra os clássicos "A Metamorfose" ou "O Processo", que já nos chegam envoltos em opressiva mitologia crítica.

Nos contos, podemos quase simular uma leitura virgem de um autor desconhecido. Kafka desafia o impulso instintivo de todo leitor, que é "farejar sentido", esse volátil espírito coletivo que nos povoa para organizar o mundo. O choque kafkiano vem basicamente do contraste entre a sua linguagem de princípio realista, comum, corriqueira, e aquilo que ele nos conta, que será, irremediavelmente, absurdo.

Por exemplo: Blumfeld irrita-se com duas bolas perseguindo-o aos pulos em seu quarto de solteirão, até que ele consegue prendê-las num baú. Em seguida, depois de um entrevero com crianças vizinhas, ele vai para a fábrica na qual trabalha, e "os pensamentos no trabalho aos poucos começam a dominar todo o resto", mas a mesma incompletude permanece. Os elos entre uma coisa e outra, esmiuçados pela narração, funcionam segundo uma lógica onírica —uma concatenação de fatos malucos que, na vida real, parecem só dizer respeito a quem sonha. Nada faz sentido.

Não são histórias que se reduzam com facilidade a alegorias ou fábulas morais. Alguém disse que ele era um "piadista" —mas há sempre algo sombrio na sua frase. E nem a mais esforçada calçadeira ideológica conseguiu enfiar o pé indócil de Kafka no sapato proletário, marxista, religioso, moralista, ou o que seja. Também não há fórmulas literariamente reconhecíveis em molduras minimamente estáveis (o sentimental, o suspense, o policial, a fantasia, o político —nada disso).

Perguntamo-nos: o que isso quer dizer?

Não é uma pergunta ingênua. Kafka prossegue desafiando o leitor, quase um século após sua morte. Diante dele, o leitor será obrigado a se transformar num psicanalista e oferecer uma interpretação ao paciente que o enfrenta. De modo que, nos seus textos, a proposição do personagem de Huxley se inverte: em Kafka, a realidade faz sentido. E sua ficção é a marreta que o destroça.

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