Cristovão Tezza

Ficcionista e crítico literário, autor de “O Filho Eterno” e “A Tirania do Amor”.

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Cristovão Tezza
Descrição de chapéu

O livro é melhor

O realismo do livro, que nos parece tão nítido à leitura, é antes feito de sugestões do que de fotos

Ilustração
Vânia Medeiros/Folhapress

Lembro que, na virada dos anos 1970, pouco depois de ler "O Estrangeiro", de Albert Camus (1913-1960), assisti à adaptação cinematográfica do livro, dirigida por Luchino Visconti, com Marcello Mastroianni no papel principal.

A obra de Camus, um dos clássicos da ficção do século 20, conta a história de um homem, Meursault, que conduz a vida sob um manto de indiferença e, depois de uma sucessão de acasos irrelevantes, por causa do reflexo do sol nos olhos —é sua explicação—, acaba por matar um árabe.

No julgamento, que o condena à morte, a acusação relembra, entre outras monstruosidades, que ele é um homem que não chorou no enterro da mãe.

Saí do cinema impressionado pelo filme, de que guardo até hoje cenas vívidas na memória, como Mastroianni contestando agressivamente o padre que vem lhe oferecer a extrema-unção na cadeia (o que, à época, me pareceu uma "falha" do romance: o súbito ataque de fúria de Meursault me soou incompatível com a indiferença metafísica que estrutura a narrativa).

Mas o filme de Visconti parecia-me a adaptação cinematográfica perfeita de um livro. Bem, a imagem de uma "adaptação perfeita" era certamente um erro juvenil típico dos amantes da literatura: o suposto acerto do filme estava em, basicamente, ilustrar, fotograma a fotograma, cada página do livro, como numa história em quadrinhos semovente, fiel em cada instante —o que é, naturalmente, uma tarefa inviável.

Alguém já disse que livro bom dá filme ruim e livro ruim dá filme bom, o que é engraçado, mas faz algum sentido, se entendemos "ruim" por literatura de entretenimento. Se Meursault fosse um psicopata, poderia render um bom thriller nas telas, mas seria literatura B.

O que faz a obra-prima de Camus é justamente a impressão de normalidade do personagem. A sua ausência de empatia parece coincidir misteriosamente com a ausência de empatia que o leitor sente em si mesmo, ao se ver no lugar dele enquanto avança na leitura. Lembremos Raskólnikov, de "Crime e Castigo" —fosse ele um louco de amarrar que sai matando velhinhas, Dostoiévski mal seria lembrado hoje; é a escolha moral do personagem que dá a estatura do livro.

Como numa volta à infância, acabo de ler um livro e ver o filme correspondente, cheio de esperança de repetir a sensação de comunhão da literatura com o cinema que vivi quando jovem. O livro é uma delicadeza, desde o tema: "A Livraria" (Bertrand Brasil; trad. de Sonia Coutinho), da inglesa Penelope Fitzgerald (1916-2000).

No final da década de 1950, a viúva Florence Green decide abrir a primeira livraria de uma pequena cidade. Estamos na Inglaterra, e em plena era de prestígio da palavra escrita. Quem poderia ser contra uma livraria? Pois Fitzgerald vai tecendo a toques de ironia a firme película de gelo que separa um inglês dos outros ingleses e do resto do mundo, para nos mostrar os limites concretos das boas intenções.

A ressentida oposição da Sra. Gamart, uma aristocrata de província supostamente interessada num Centro de Artes, irá ganhar apoios insuspeitados, e sempre discretos, no vilarejo.

E, num momento, como numa inesperada fábula sem moral, Florence se verá completamente abandonada pela cidade que pretendia valorizar. A única voz com que ela poderia contar seria a do velho e intratável Sr. Brundish, para quem o ato de "entender torna a mente preguiçosa". Será um apoio inútil.

O realismo do livro, que nos parece tão nítido à leitura, é antes feito de sugestões do que de fotografias; há sempre algo estimulante que não se compreende.

Aliás, Florence não é uma intelectual deslumbrada. O leitor sente que o seu projeto pessoal tem uma outra raiz. Pois bem, fui ver o filme, dirigido pela catalã Isabel Coixet.

É claro que, na transposição das linguagens, da sequência de palavras para a sequência de fotogramas, algo se reestrutura completamente; e um filme será sempre obra singular de um diretor, e não a ilustração de um livro, que, no máximo, terá a qualidade de dar o argumento a um bom roteiro.

Mas, tudo considerado, da trilha sonora pouco feliz ao contínuo reforço argumentativo que tenta explicar, ou antes explicitar, o que a narrativa sutilmente apenas sugere, o filme naufraga no sentimentalismo e no didatismo moral, essa praga contemporânea.

Enfim, como (quase) sempre, o livro é melhor.

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