Cristovão Tezza

Ficcionista e crítico literário, autor de “O Filho Eterno” e “A Tirania do Amor”.

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Cristovão Tezza

O eterno retorno

A permanente fragilidade democrática está no fato de ela ser a regra do jogo

Ilustra de Vânia Medeiros para Cristóvão Tezza
Vânia Medeiros

Na primeira eleição de que participei, em 1970, anulei o voto, em protesto à ditadura militar. Na bruma entusiasmada da juventude, sob os ventos libertários e quixotescos da contracultura, imaginava que o meu voto apenas legitimaria a ditadura. Foi um erro.

A única maneira (e, de fato, a melhor) de defender a civilização contra a violência militar era a simplicidade do voto e só através dele o país foi superando, eleição a eleição, o atávico atraso institucional, até recuperar, enfim, a sua moldura democrática básica.

Pela singularidade brasileira, cujo espírito a um tempo cordato e violento de conciliação perpétua é organicamente avesso à convivência das diferenças, e pelo peso histórico da cultura de Estado, que mantém suas raízes sobre os arcaísmos da desigualdade renitente, a democracia sempre foi quebradiça entre nós.

Para a velha esquerda revolucionária, tratava-se apenas da "democracia burguesa", um estágio passageiro de quem vê a História como um teatro moral coletivo, cujo destino é a redenção dirigida; exatamente o mesmo olhar da direita truculenta, cujo messianismo teológico acolhe e protege o porrete dos que encontram na exclusão a sua metafísica contra a diferença.

A permanente fragilidade democrática está no fato de que a democracia não é um programa de governo, um ideário de metas, uma passagem fulgurante para algum outro lugar.

Ela é, simplesmente, a regra do jogo, e não o jogo. O jogo é o dos governos eleitos que se revezam. A função central da democracia é apenas manter-se democracia, um quadro institucional capaz de garantir um máximo de convivência entre os diferentes.

O que a sustenta, em última instância, não é a força do Estado, do Exército, das milícias, das religiões ou dos tribunais, mas o simples desejo dos cidadãos, cristalizado numa cultura comum, laica e neutra.

É muito frágil, uma tensão de desequilíbrios, mas é o que temos de melhor. Passei a metade da minha vida sonhando com ela. Em alguns momentos, ingênuo, cheguei a antever um Brasil civilizado, quando a explosão da internet devolvia a escrita e a leitura ao país --depois que a desinteligência da ditadura havia criado a reserva de mercado da informática, que nos atrasou por uma geração.

Mas o velho país, na passagem do tacape para o celular, move-se e respira mal, vítima de fraturas invencíveis.

A ilusão das rupturas redentoras entrou de novo, assustadora, no horizonte. Vivo a sensação de que não saí do lugar.

É preciso manter a democracia brasileira; toda ruptura favorece, sempre, o que há de pior. Nem se trata mais de um escolha mecânica entre esquerda e direita, que se misturam na clássica neblina ideológica do país real.

O que está em pauta, de fato, é a regra do jogo, a simples democracia. Sobre os escombros do monumental desastre da era Dilma, debaixo de um emocionalismo de manada, muitos imaginam que dinamitar a democracia seria o caminho da salvação.

A candidatura Bolsonaro, acompanhada de perto pelos óculos escuros do general Mourão, é o nosso mito do eterno retorno, a perfeita síntese da tragédia política brasileira.

Em cada gesto e palavra, no primarismo intelectual, no culto da violência, na ignorância histórica, no permanente desconforto com a diferença, na estupidez verbal como método, no ódio aos fatos e à imprensa livre, no desprezo sarcástico a todas as formas de representação institucional, no orgulho arrogante da barbárie e no despreparo brutal, em tudo revelam-se os sinais inconfundíveis da implosão democrática que ele representa.

Típico político do Congresso brasileiro, deputado irrelevante e militar reformado na esteira de uma pilha de processos, tornou-se a expressão ressentida de um elogio à tortura que a própria ditadura tinha pudor de confessar.

Chegou a declarar que não aceitaria outro resultado senão a vitória, como um garoto birrento batendo o pé.

O efeito simbólico desse ideário antipolítico e de seu ofensivo desprezo institucional é devastador no momento brasileiro, ainda mais quando se desenha uma trágica polarização de rejeições. Porque, do outro lado, a insistência lulista na candidatura teleguiada de Haddad, como uma carta branca do naufrágio, parece afundar de vez qualquer opção minimamente racional.

Após 50 anos, recomeçando do mesmo lugar, vejo a escolha deste primeiro turno como o espaço simples do gesto pessoal em direção de uma terceira via, pelo princípio da manutenção democrática.

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