Cristovão Tezza

Ficcionista e crítico literário, autor de “O Filho Eterno” e “A Tirania do Amor”.

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Cristovão Tezza

Uma ficção presidencial

Os candidatos Fernando Haddad e Jair Bolsonaro dariam bons personagens?

Ilustração de Vânia Medeiros para Cristóvão Tezza de 21.out.2018.
Vânia Medeiros

Para entender melhor o que está acontecendo, vou usar o método da ficção na criação de personagens, seguindo o clássico registro realista.

Como se sabe, a ficção dá sentido às coisas do mundo, seguindo alguns pressupostos de verossimilhança, de acordo com um certo senso comum difícil de delimitar mas intuitivamente sólido.

Pergunta inicial: os candidatos dariam bons personagens? O objetivo romanesco, aqui, seria ir além da mera sátira. Ao escritor, interessam primordialmente as pessoas e o eixo de valores que as sintoniza com o mundo.

Vejamos Haddad: é um professor. Posso vê-lo diante de um quadro-negro, um giz na mão, os estudantes atentos. Fui professor durante duas décadas e convivi com eles a vida inteira, desde meus pais. Professores dão personagens interessantes; já escrevi uma galeria deles.

Há uma gota de civilização em toda aula que se dá no mundo, uma tensão iluminista, um pressuposto de razão, um projeto que se supõe comum. Ao mesmo tempo, é uma profissão que lida o tempo todo com pessoas, que exige moderação e alguma inteligência emocional, sob o peso de uma autoridade social concedida.

Pois bem, no romance da eleição presidencial, imagino um Haddad hamletiano, assaltado por dúvidas mortais, posto inesperadamente à frente de uma guerra brutal, pressionado por forças disparatadas e levando nas costas o peso gigantesco de um partido em frangalhos, cujas bandeiras (ele sabe disso) estão rotas.

Ele precisa ocultar o desconforto; desta vez há uma herança maldita verdadeira, e não confessável, a carregar. Além de tudo, próxima do desfecho, a batalha parece perdida.

Como Henrique 5º às vésperas de Azincourt, ele precisa de um Shakespeare que lhe sopre ao ouvido: "Quem hoje derrama seu sangue comigo passa a ser meu irmão. Pode ser um homem de condição humilde; o dia de hoje fará dele um nobre" (ed. L&PM, trad. de Beatriz Viégas-Faria).

Do outro lado temos um capitão afastado do Exército que enveredou há 30 anos para a vida política. Como o romance é o gênero do homem que fala, relembro suas frases inesquecíveis: "O erro da ditadura foi torturar e não matar"; "Deus acima de tudo. O Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude"; "esses grupos de extermínio, no meu entender, são muito bem-vindos"; "eu falei que não ia estuprar você porque você não merece" etc.

Há mil exemplos semelhantes, que a inesgotável burralhada de internet multiplica com volúpia, às vezes de porrete e suástica à mão.

O choque da barbárie chegou a perturbar até mesmo Marine Le Pen, líder da direita radical francesa, que elegantemente atribuiu o seu estilo à "diferença cultural brasileira". Trocando em miúdos, ela diz que tem de dar o desconto, porque a bugrada dos trópicos é assim mesmo. O general Mourão assinaria embaixo.

Como extrair dali um personagem? Não se trata de rompantes de adolescente; também não consta que beba, o que às vezes libera as trevas íntimas. Bolsonaro de fato acredita em cada palavra que ele diz.

Ao escrever, sempre me pergunto, para sondar as fronteiras éticas da literatura: eu tomaria um cafezinho com esse personagem? A caricatura não me interessa. Mas, quando ele fala com alguma civilidade, apenas repete a ordem do dia de uma aula de moral e cívica da década de 1930, que é, de fato, de onde vem, por atavismo, o seu quadro mental.

Para salvá-lo na página, tento recorrer a Maquiavel: os fins justificam os meios. A implosão do PT não teria preço. Além disso, ele é a alegria do chamado "mercado": sob a mão sábia de Paulo Guedes, vamos privatizar tudo e destravar a economia brasileira. A carapaça paleolítica seria apenas a máscara eleitoral.

Bem, o problema do escritor é manter a consistência narrativa: Bolsonaro é um típico milico, de espírito corporativo-sindical, que ama o Estado. No processo turbulento que sofreu no Exército por insubordinação, exigia aumento de soldo para a tropa, como se fora um bravo soldado do PT.

Não é preciso ser analista econômico para desconfiar que Bolsonaro não vai privatizar coisa alguma; talvez só as terras indígenas, que atravancam o Grande Estado.

Não há projeto visível; as duas únicas reformas que de fato o preocupam são as da urna eletrônica e dos limites do WhatsApp para repassar mensagens; nesse caso, ele teria de estatizar o aplicativo. Seria páreo para Jânio Quadros, célebre por proibir o biquíni e a rinha de galos.

Decididamente, é muito pouco para um bom personagem. Já como pessoa real, prefiro não partilhar o cafezinho.

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