Cristovão Tezza

Ficcionista e crítico literário, autor de “O Filho Eterno” e “A Tirania do Amor”.

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Cristovão Tezza

A era do palavrão

A força da internet vem rompendo a fronteira entre o público e o privado

Em obras como "O Processo Civilizador" e "A Sociedade de Corte", o pensador Norbert Elias (1897-1990) analisa a passagem da Idade Média para os nossos tempos a partir de detalhes do comportamento cotidiano descritos em manuais de etiqueta. Normas para usar talheres, cumprimentar, cuspir ou fazer necessidade em espaços públicos tornavam-se marcadores de classe de um mundo que se estratificava cada vez mais.

A etiqueta era um dos índices da distinção social, apontando o cruzamento das modificações estruturais que formataram o mundo moderno, do irreversível processo de urbanização, que fez do campo e da cidade entidades substancialmente distintas, até a criação do conceito de Estado como o entendemos hoje.

Poderia ser também a máscara da "falsidade", a chamada boa educação como um mero verniz de salamaleques e aparências a destruir o lado "autêntico" da vida.

A literatura e o teatro exploraram desde sempre o eventual ridículo das convenções sociais. A linguagem, que permeia tudo, exerceu um papel central neste divisor de águas.

Ilustração
Vânia Medeiros/Folhapress

No século 15 português, um cronista da importância de Fernão Lopes (1385-1460), ao tratar de assuntos de Estado, usa com naturalidade expressões como "puta velha", "fodudo no cu", "fideputas cornudos" e imagens vívidas como esta para descrever as agruras da seca: "Ali onde mijavam os homens, iam as bestas chuchar, e comiam aquela terra molhada".

Não era conversa de taverna; era a alta historiografia real, nas mãos de um fino cronista e um dos maiores escritores da formação da nossa língua.

Dois séculos depois, esta linguagem já seria impensável em qualquer uso dos estratos sociais superiores, tanto na literatura quanto no cotidiano público.

O palavrão, a vida sexual, a escatologia, o próprio ato de fazer necessidades, que gozavam de uma presença mais ou menos inocente durante a Idade Média, saem de cena e desaparecem da vida pública, isolando-se numa incrível novidade: a "vida íntima".

Naturalmente, o palavrão jamais morreu; sobrevivia à sombra, potencializando tanto mais sua força contestatória, quanto mais conspícua era sua interdição pública, assim como o erotismo cresce (como diria Nelson Rodrigues) quanto mais se cobrem as partes, e não o contrário.

Apenas no século 20, o palavrão sai do gueto da vida pessoal em que se via confinado e começa a retomar o espaço público, inicialmente literário; a revolução das formas de linguagem rompe também o casulo das intimidades culturais, de modo que em pouco tempo não haverá mais tabu que não caiba na representação artística.

No Brasil nos anos 30, muito do sucesso do então jovem romancista Jorge Amado se deveria à novidade de sua língua solta ao reproduzir expressões da fala popular. Nos anos 60, a explosão da contracultura fará também do palavrão uma arma revolucionária a estilhaçar convenções.

Lembro do meu primeiro palavrão: um mundo novo e libertário parecia se abrir diante de mim. (Hoje, bem mais tranquilo, eu os reservo, na alegria e na tristeza, para os jogos do glorioso Club Athletico Paranaense, campeão da Copa Sul-Americana.) Mas a liberdade que se abria na linguagem viva jamais chegou a alterar a interdição dos palavrões na esfera pública oficial.

A etiqueta é pura forma, e nisso reside a sua sofisticação. É um pressuposto do respeito à diferença, uma expressão antes de generosidade do que de falsidade, mesmo se a intenção é falsa. Não importa: é uma regra implícita de convivência comum, e aí está a sua força.

Na verdade, estava: a fronteira entre o público e o privado vem sendo rompida, agora pela força da internet.

Na algaravia contemporânea, o boteco, o bordel, a escola, a igreja, o tribunal e o palácio falam todos a mesma língua, sempre de boca cheia e de alcance universal. Mas não se trata de uma nova Idade Média, quando a proximidade entre rei e súdito era de fato um traço cultural enraizado.

Hoje, templários, astrólogos, videntes, cruzados, druidas, soldados e sacerdotes que, como num inacreditável elenco de um novo "Game of Thrones" dirigido por Olavo de Carvalho, representam os avatares do governo Bolsonaro, são filhos da cultura de internet, das caixas de comentários, dos grupos de WhatsApp e do universo dos jogos, inteiro regido pela simplificação mental, polarizações infantis, explosões de fúria e totalidades indeterminadas.

Pensar é pilotar o dedo ou o mouse diante de uma tela de pixels. Na lógica do "game over", palavrões orgulhosos explodem sonoros aqui e ali sempre que uma nova fase do jogo virtual é enfrentada.

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