Gelo e gim

Coluna é assinada pelo jornalista e tradutor Daniel de Mesquita Benevides.

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O coquetel perfeito para beber na taverna de Álvares de Azevedo

Em 'Macário', autor louva o conhaque, bebida predileta: 'Não te ama quem não te entende!'

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Era um adolescente. Sofria de tédio e passava dias delirando com paisagens nebulosas, onde vagavam virgens pálidas. Mais que tudo, cultivava a rebeldia aprendida com os ídolos, Goethe, Musset e principalmente Byron.

Vinha daí o gosto pelas aventuras de alcova e lutas com piratas. E pelas noites nas tavernas, bebendo vinho e conhaque com os amigos de farra, como o escritor Bernardo Guimarães, capaz de grandes proezas etílicas.

Seus textos viviam povoados de excessos, frutos do entusiasmo juvenil e da febre do romantismo. Foi Antonio Candido quem sentenciou: "ou nos apegamos à sua obra passando por sobre defeitos e limitações que a deformam, ou a rejeitamos com veemência, rejeitando a magia que dela emana".

O diagnóstico está no estupendo "Formação da Literatura Brasileira", que a Todavia acaba de relançar, num belo projeto de reedição de toda obra do crítico.

O capítulo sobre Álvares de Azevedo é um primor, como no trecho em que fala do "cansaço precoce de viver" e da imaginação capturada pela sensualidade, em que pese a figura punitiva da mãe. Ou quando contrapõe seu lado sentimental ao lado mais irreverente, lembrando que ele foi o primeiro autor brasileiro "a dar categoria poética ao prosaísmo cotidiano".

Tendo morrido aos 20 anos, em consequência da infecção de uma ferida após cair do cavalo —e não de tuberculose, como se pensava—, era possivelmente apenas um teórico nas artes do amor dilacerado e carnal de que tanto fala nos poemas e contos —e talvez nem tão boêmio como deixava transparecer.

Mas o que importa? Como diz Candido, "o sonho é nele tão forte quanto a realidade; os mundos imaginários, tão atuantes como o mundo concreto". E na sua necessidade de transpor as inseguranças juvenis, o elogio dos prazeres mundanos é frequente.

Busto de Álvares de Azevedo, em frente à Faculdade de Direito da USP, no largo São Francisco, centro de São Paulo - Alessandro Shinoda - 10.jul.11/Folhapress

Em "Macário", seu melhor texto, Azevedo se derrama no elogio a seu destilado favorito: "Conhaque. És um belo companheiro de viagem. (...) no silêncio que inspiras, como nas noites de luar, ergue-se às vezes um canto misterioso que enleva!". Carregado pelo fervor, conclui: "Não te ama quem não te entende!".

Já quanto às mulheres, o único amor que parecia entender era o impossível de se realizar, aquele que se revela no limiar da morte, quando só há tempo para o roçar dos lábios e uma eternidade de adoração. Num dos contos de "Noite na Taverna", em que parceiros de bebedeira se alternam para contar casos tenebrosos, um jovem abraça e beija uma morta. Tocada pelo desejo ardente, ela desperta, como uma versão lúgubre da Branca de Neve.

O amado conhaque também tem esse poder de ressurreição. Ao menos é o que se deduz da cena em que Satã o oferece ao byroniano Macário: "Liba esse licor: uma gota bastaria para reanimar um cadáver".

Trecho de conto do livro 'Noite na Taverna', de Álvares de Azevedo
Trecho de 'Macário', peça teatral escrita por Álvares de Azevedo - Reprodução

Impossível não pensar no corpse reviver, essa categoria de coquetéis levanta-defuntos. O nº 2, já tratado aqui, é o mais famoso. Porém o nº 1, cuja receita data dos princípios do século passado, traz justamente a bebida que o poeta louvava.

"Olá, taverneira! Não vê que as garrafas estão esgotadas?", gritam os personagens do adolescente por mais uma rodada de vinho, "spleen e charutos". E brindam, como se fosse a ele: "Bebei à lembrança do cérebro que ardeu nesse crânio, da alma que aí habitou!".

Coquetel Manhattan com casca de laranja - Jamurka/Adobe Stock

CORPSE REVIVER Nº 1

30 ml de conhaque

30 ml de Calvados

30 ml de vermute doce

Mexa os ingredientes com gelo e coe para uma taça coupe gelada. Finalize com um twist de limão siciliano.

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