Gelo e gim

Coluna é assinada pelo jornalista e tradutor Daniel de Mesquita Benevides.

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O balcão de 'Atlanta'

Na série da Netflix, a variante branca do conhaque Hennessy

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A discussão ficou quente. De um lado, o condutor de carruagem Billy Lyons; de outro, o cafetão Stagger Lee. Num gesto que se provaria tolo, Lyons dá um tapa no chapéu de Lee, mandando-o para o chão. O ofendido pesou a honra num fio de tempo. E então o Colt surgiu do colete.

Stagger Lee cobriu a cabeça e saiu friamente do saloon. Era Natal de 1895. Atrás de si, o estrondo, a fumaça, o morto e a lenda. A refrega virou tema de livros e canções, a mais famosa na voz de Lloyd Price, Ray Charles e James Brown, entre outros. Em sua própria versão, Nick Cave mudou as vítimas para um bartender e um proxeneta concorrente.

Na história real, o disparo aconteceu no saloon de Bill Curtis em St. Louis, que nada tinha a ver com os chamados "buckets of blood" (baldes de sangue), onde caubóis, jogadores de pôquer, caçadores de recompensa, bandoleiros e desertores bebiam e brigavam até pintar um Rothko vermelho no assoalho.

A casa era de paz, respeitada na vizinhança. E seu dono, um dos muitos afrodescendentes a administrarem tavernas em fins do século 19 —ocupação tolerada (talvez incentivada) pela elite pálida. Ali, brancos eram bem-vindos; já os negros, se fossem a um estabelecimento "branco", eram escorraçados com violência.

Ainda há muito a descobrir sobre a enorme contribuição de afrodescendentes ao universo da mixologia. Recentemente, Thiago Bethônico escreveu aqui na Folha sobre um caso raro de reparação histórica. É a história do ex-escravizado Nathan Green, considerado o primeiro mestre destilador do Tennessee. Foi ele quem ensinou tudo a um jovem chamado Jack Daniel. O professor foi convenientemente esquecido e o aluno virou marca ultrafamosa.

Isso mudou em 2017, quando surgiu a destilaria Nearest Green, criadora do uísque Uncle Nearest 1856, sucesso de público e crítica. A empresa, vizinha da Jack Daniel's, é comandada por mulheres, entre elas uma tataraneta de Green, cujo apelido era Uncle Nearest, o Tio Mais Próximo.

Faz pensar num episódio de "Atlanta", uma das melhores séries dos últimos tempos, que mais parece cinema independente. Por meio de exames de DNA, negros descobrem os antepassados daqueles que escravizaram seus antepassados. E partem para a cobrança da dívida acumulada, amparados por advogados e policiais. O preço a pagar vai de pedir perdão de maneiras humilhantes a entregar a casa ou transferir milhões. A incredulidade inicial cede ao terror. Inevitável pensar: não é justo?

Cena da primeira temporada da série 'Atlanta', da Netflix - Divulgação

Em outro episódio, Earn (Donald Glover) vai com a ex-namorada (Zazie Beetz) à festa de um milionário branco obcecado pela cultura negra —e muito sem noção. Ele pergunta: "Você nunca foi à África? Mas é sua terra natal!". Entre os drinques temáticos há o abolition&absinthe e o plantation master poison. Earn, com o saco na Lua, acaba tomando um Hennessy puro.

É o mesmo que bebe o rapper Paper Boi (Brian Tyree Henry), seu primo, num capítulo da terceira temporada (que se passa inteira na Europa, uma das inúmeras ironias de "Atlanta"). Mas a variante branca. Conhaque branco? Ele senta-se no balcão de um bar em Amsterdã chamado Cancel Club. Ao seu lado está Liam Neeson, no papel de si mesmo. O ator foi cancelado depois de uma declaração racista, em 2019. Ele desabafa para o rapper e pede desculpas pelo que disse. Mas aí…

Aí, quem não viu, veja.

Adega da destilaria Hennessy, em Cognac, sudoeste da França - Regis Duvignau - 22.jan.09/Reuters

COGNAC JULEP

75 ml de Hennessy VSOP (ou outro conhaque)

15 ml de xarope de açúcar

Bata os ingredientes com gelo e coe para uma caneca Julep com gelo moído. Finalize com 12 folhas de hortelã.

Erramos: o texto foi alterado

A canção 'Stagger Lee' foi gravada na voz de Lloyd Price, e não Percy Sledge. O texto foi corrigido.

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