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Norman Eisen e Amy Lee Copeland

Indiciamento de Trump na Geórgia inclui detalhes criativos e perspicazes

Ação estadual complementa caso federal contra o ex-presidente e tem suas próprias peculiaridades

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Norman Eisen

É coautor de “Fulton County, Georgia’s Trump Investigation", um relatório do think tank Brookings Institution sobre o inquérito conduzido contra o ex-presidente no estado da Geórgia.

Amy Lee Copeland

É advogada de defesa criminal e de recursos em Savannah, no estado americano da Geórgia.

Quando a procuradora Fani Willis, do condado de Fulton, na Geórgia, apresentou acusações criminais contra Donald Trump e mais de uma dúzia de seus aliados pela tentativa de derrubar os resultados da eleição presidencial de 2020 no estado, ela fez algo criativo e inteligente.

Contrastando com o mais recente indiciamento federal de Trump pelo procurador especial Jack Smith, focado exclusivamente no ex-presidente, Willis indiciou um grupo amplo de conspiradores, desde assessores de Trump até funcionários de baixo escalão do Partido Republicano na Geórgia. E ela é a primeira a investigar a conspiração a fundo, concentrando-se sobre seu estado.

O caso de Willis também traz complementos importantes para a ação federal: diferentemente da ação movida por Smith, que devido aos padrões federais quase certamente será julgada a portas fechadas, é quase certo que o julgamento movido por Willis será televisionado, e, se Trump ou outro republicano conquistar a Casa Branca, os réus não poderão ser perdoados imediatamente.

Homem permanece sentado em cadeira após fim de comício do Partido Republicano em Valdosta, na Geórgia, em 2020 - Damon Winter - 5.dez.20/The New York Times

A ação garante transparência e responsabilização. Como Willis disse na entrevista coletiva que deu à imprensa, "o papel do Estado neste processo é essencial para o funcionamento de nossa democracia".

Mas o indiciamento se destaca sobretudo porque o que aconteceu na Geórgia oferece provas singularmente convincentes de interferência eleitoral, além de um conjunto de estatutos criminais estaduais feitos sob medida para combater os delitos amplos e frouxamente organizados que Trump e seus conspiradores são acusados de haver cometido.

É algo que ressalta a inteligência do federalismo americano: quando nossa democracia é ameaçada, os estados têm um papel indispensável a desempenhar para protegê-la.

Com 98 páginas, o indiciamento apresentado por Willis tem mais que o dobro do comprimento do indiciamento apresentado por Smith em sua ação pelo 6 de Janeiro e abrange 19 réus, enquanto o de Smith tem apenas um. O indiciamento abrange 41 acusações (contra quatro feitas no indiciamento apresentado por Smith). Entre elas constam crimes cometidos na eleição da Geórgia como a solicitação de violação do juramento por um funcionário público (pelo pedido infame feito por Trump ao secretário de Estado da Geórgia, Brad Raffensperger, de simplesmente "encontrar 11.780 votos") e delitos estaduais como falsificação e conspiração para cometer falsificação (por acessar máquinas eleitorais no condado de Coffee ilegalmente em uma tentativa de mostrar que votos teriam sido roubados).

O grande elenco de réus povoa uma cadeia de comando conspiratório completa e inclui nomes famosos (Trump, seu chefe de gabinete Mark Meadows e seu advogado Rudy Giuliani), infames (os advogados de Trump John Eastman, Ken Chesebro e Jeffrey Clark) e nomes desconhecidos (incluindo falsos delegados eleitorais da Geórgia e aliados locais da campanha de Trump sem os quais a conspiração teria atolado).

Willis junta todos eles, fazendo uma acusação a Trump e a cada um dos outros 18 réus segundo os termos da lei Rico ("Racketeer Influence and Corrupt Organization Act"), acusando Trump e seus conspiradores de funcionar como uma quadrilha criminosa.

A lei americana reconhece há anos, por meio do crime de conspiração, que grupos de criminosos agindo juntos são mais perigosos que criminosos isolados. A lei Rico prevê penas mais duras e oferece outras vantagens, como reunir várias conspirações frouxamente ligadas sob um só guarda-chuva.

A Geórgia tem um dos estatutos da Rico mais amplos do país. A legislatura estadual a promulgou especificamente para "aplicar-se a um padrão inter-relacionado de atividade criminal" e prevê que os tribunais o "interpretem de modo amplo" para proteger o Estado e seus cidadãos. Pelos termos da legislação, os procuradores podem acusar uma empreitada criminal grande e até incluir indivíduos que talvez não tivessem conhecimento da existência dos outros.

A legislação pode ser acionada na Geórgia por violações de toda uma gama de crimes federais, além de 50 delitos específicos do estado, incluindo falsificação, declarações falsas e pressão para influenciar testemunhas.

A promotora Fani Willis, do condado de Fulton, na Geórgia, durante entrevista coletiva em Atlanta - Elijah Nouvelage - 14.ago.23/Reuters

A aplicação da Rico na Geórgia virou a assinatura de Willis. Ela já aplicou a legislação em casos como o escândalo de falsificação por professores em Atlanta, em que educadores participaram de um esquema amplo para aumentar as notas de estudantes em provas padronizadas, e a ação contra o rapper Young Thug, que cofundou uma gangue de rua acusada de cometer quase 200 atos criminais.

Ao usar a Rico, Willis acusa Trump de atuar como líder de gangue que comanda uma quadrilha de ladrões, só que em vez de roubar dinheiro ou carros, ele e seus aliados são acusados de tentar roubar os resultados da eleição presidencial na Geórgia.

A acusação maior abrange quatro tramas principais. A primeira foi de pressionar funcionários públicos para promoverem o objetivo de garantir os votos dos delegados eleitorais da Geórgia para Trump, apesar de ele ter perdido o voto popular. Como provas, além do telefonema de Trump a Brad Raffensperger, Willis detalha outros esforços de Trump e seus corréus –incluindo a pressão exercida por Giuliani sobre legisladores estaduais, a pressão exercida por Mark Meadows sobre autoridades eleitorais e as mentiras e as intimidações dos corréus contra as contadoras de cédulas Ruby Freeman e Wandrea Moss.

Isso também inclui esforços em Washington que afetaram a Geórgia, como o fato de o advogado do Departamento de Justiça Jeffrey Clark ter redigido um rascunho de carta alegadamente fraudulenta atacando o Estado.

A segunda trama foi a organização de delegados eleitorais para declarar falsamente que Trump foi o vencedor na Geórgia. Willis alega que Trump participou pessoalmente desse esforço; por exemplo, ele telefonou ao Comitê Nacional Republicano, juntamente com Eastman, da Casa Branca, para organizar as listas falsas de eleitores. E Willis menciona muitas outras atividades dentro e fora do estado.

A terceira trama foi o acesso ilegal a máquinas de votação no condado de Coffee. O indiciamento alega que, após uma conversa na Casa Branca sobre conseguir acesso aos equipamentos para comprovar o suposto roubo de votos, Sidney Powell, uma advogada ligada a Trump, juntamente com aliados de campanha e consultores em informática, conspiraram para ter acesso aos aparelhos em Coffee.

A inclusão desse plano no indiciamento chama a atenção para um dos aspectos até agora menos notados do esforço nacional. Jack Smith nem sequer o menciona em seu indiciamento federal. Mas o indiciamento apresentado por Willis alega que fez parte de um plano discutido (em linhas gerais) no Salão Oval.

A quarta e última trama é algo que já virou um elemento comum nas acusações feitas a Trump e seus associados: obstrução e acobertamento. Willis alega que membros da conspiração registraram documentos falsos, deram declarações falsas a investigadores do governo e prestaram falso testemunho durante os procedimentos judiciais em Fulton.

Além das acusações sob a legislação Rico, cada um dos 19 réus é acusado de pelo menos mais um delito. Possivelmente o mais notável entre eles é a acusação feita a Trump e a seis dos outros réus de solicitação criminal de violação de juramento por um funcionário público. Essa acusação cabe como uma luva no pedido de 11.780 votos feito por Trump.

Ele já começou a se defender, tentando desqualificar Willis e seu grande júri especial, com base em uma gama de supostos conflitos e outras queixas. Os tribunais da Geórgia já rejeitaram esses argumentos ampla e repetidamente. É provável que Trump também lance mão de argumentos semelhantes aos que ele e sua equipe legal apresentaram em questões criminais pendentes em outros foros, pedindo que o caso seja transferido para um tribunal federal, alegando que tem direitos previstos pela Primeira Emenda com argumentos de defesa que já foram desmontados por vários especialistas jurídicos.

Trump e seus conspiradores podem tentar contestar as acusações pela lei Rico com base em argumentos técnicos, dizendo, por exemplo, que as conspirações não são suficientemente interrelacionadas sob o estatuto. Mas Willis alega o contrário, com argumentos fortes, destacando em especial o propósito unificador do esforço de Trump de ilegalmente tomar os votos dos delegados eleitorais da Geórgia.

O fato de que tudo isso provavelmente será transmitido ao vivo pela televisão vem ampliar a natureza histórica do indiciamento. As leis da Geórgia autorizam a transmissão de julgamentos; o estado considera que os tribunais abertos ao público são "um elemento indispensável de um sistema judicial eficaz e respeitado". Supondo que as regras que impedem a transmissão pela TV de julgamentos federais sejam seguidas, o julgamento na Geórgia será o único ao qual o público poderá assistir enquanto ele acontece.

Sabemos pelas audiências do 6 de Janeiro –e também, em uma era anterior, pelas audiências do caso Watergate— que ouvir e assistir a esses acontecimentos têm um efeito poderoso. E eles poderão ser revistos na posteridade, como lição de aplicação do Estado de Direito.

Há uma vantagem final importante do caso da Geórgia. Ele está protegido contra o que talvez seja a derradeira esperança de Trump: a possibilidade de um perdão, caso ele ou outro republicano seja eleito presidente em 2024 (ou uma ordem que um presidente republicano pudesse dar ao Departamento de Justiça para que abandonasse o caso). O poder presidencial de perdoar crimes federais não se estende aos crimes estaduais.

E os perdões na Geórgia não são um poder que cabe apenas ao chefe do Executivo e que é irrevogável. Os perdões são outorgados pelo Conselho Estadual de Perdões e Condicionais –e só podem ser emitidos cinco anos após todas as sentenças terem sido cumpridas.

O indiciamento apresentado por Willis complementa fortemente o caso federal. Ele acrescenta dimensionalidade, transparência e a garantia de responsabilização adicional do ex-presidente e daqueles que traíram a democracia na Geórgia.

Tradução de Clara Allain

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