Em Dalton Trevisan, as frases mais simples, engatadas numa estrutura enxuta, em que não se veem os parafusos, ganham por vezes brilho incomum, como a lâmina de uma epifania.
"Bebo aos poucos o generoso vinho e, enquanto as sombras se insinuam nos cantos, mais brilham os olhos da moça quieta na porta, o pé esquerdo fora do chinelo. Ergo o meu copo e saúdo a vestal fugitiva do afresco erótico de Pompeia."
A descrição em "Encontro" vai do realismo preciso ao poema em prosa num espaço curto de tempo. Ver, evocar, sonhar. E então estamos dentro, participamos, somos testemunhas de uma transformação. A perícia do escritor que faz 99 anos neste dia 14 vai além do "escrever bem"; ele é antes um experimentador, como o bartender imaginativo e suas novas poções.
A bebida faz pontas frequentes nos contos do Vampiro de Curitiba. Ora é "para esquecer", ora é para criar clima na alcova; ora é o relaxamento pós-trabalho, ora antídoto para a timidez.
"Era bailarina do Marrocos, morena, olho verde, cabelo comprido. Por ela se apaixonou o Serginho, galã da noite. No fundo um tímido, jamais entrava na boate sem o cigarrinho na mão; antes, no bar da esquina, bebia cálices de conhaque num gole só."
O conto "Noites de Curitiba" é uma elegia ao hedonismo vulgar das boates. Mas que não se beba a prosa de Dalton num gole só. Ela é feita para se sorver, atento às palpitações das palavras, ao humor sombrio e erótico das curvas narrativas.
Dalton começou cedo, quando ainda era estudante de direito. Escrevia crônicas e poemas. Aos 21 anos editaria a revista modernista Joaquim, com colaboradores da estirpe de Drummond, Antonio Candido e Mário de Andrade, além de traduções de Proust, Joyce e Kafka. De acordo com seus gostos, que iam das pequenas tragédias à estética do celuloide, foi repórter policial e crítico de cinema no Diário do Paraná. E então enfileirou uma leva de 700 contos, editados com rigor obsessivo. Um livro a cada dois anos, por seis décadas.
"Muitas pessoas bebem um trago de pé no balcão. Ah, essa chuva maldita, que grandes negócios eu perdi. Não tivesse chovido, eu seria o rei barbudo no castelo de Kubla Kahn."
Em "Chuvinha", mostra o poder da concisão. Não é preciso assinalar que as pessoas "pensam", ou quem pensa isso ou aquilo. O não-rei do castelo é o homem universal. Qual? Não importa. A cena está pintada.
"Prosa ready-made", como definiu o crítico Augusto Massi em seu prefácio à recente "Antologia Pessoal". Sim, o Vampiro continua abrindo as veias de sua verve, editando sua obra, organizando arquivos e principalmente uma correspondência preciosíssima, com Otto Lara Resende, Rubem Braga, Pedro Nava, entre outros.
"Em pé no balcão os operários bebem cálice de pinga. As caixeiras deixam as lojas com a bolsinha na mão. Eis a noite que se esgueira em surdina no fundo dos quintais."
"Noite" é como uma gravura de Goeldi. A sensação do sol se esvaindo é palpável, veem-se as primeiras luzes sendo acesas, o brilho nos cálices. A escolha do vocábulo enobrece a cena. A pinga ganha ares de vinho, os operários tomam a merecida recompensa, o alívio após os primeiros sinos da noite. "Não existe melhor conchego que um barzinho."
Dalton Trevisan, 99. Homem-século. Vida longa, arte longa!
CELEBRATION
30 ml de conhaque
30 ml de vermute doce
30 ml de Campari
Dois lances de bitters de laranja
Mexa os ingredientes com gelo e coe para uma taça coupe gelada. Finalize com um twist de casca de laranja.
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