Daniel Furlan

Ator, comediante e roteirista, é um dos criadores da TV Quase, que exibe na internet o programa "Choque de Cultura".

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Daniel Furlan
Descrição de chapéu

Boca virgem

O que eu menos precisava era uma estrutura de ferro e acrílico no caminho do beijo

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A maior probabilidade de beijar alguém pela primeira vez era nas matinês da boate Zoom, e mesmo assim as probabilidades eram muito pequenas. Meu avô me levava num Kadett verde e no caminho, enquanto obedecia apenas às placas com as quais concordava, eu tinha pouco tempo para traçar minhas estratégias amorosas.

Ao sair do carro, eu sorrateiramente botava meu aparelho móvel no bolso e era isso. Essa era a minha estratégia. O que eu menos precisava era uma estrutura de ferro e acrílico no caminho do beijo na boca. 

Às 19h, o DJ Lindomar fazia o ritual de sempre: ao som de “The Final Countdown”, anunciava o início de mais uma noite de esperanças para adolescentes e pré-adolescentes. Eu basicamente fingia que dançava num lugar fixo e às vezes dava voltas pela pista com o peito estufado. Não é nenhuma surpresa que nunca rendesse frutos, até que um dia, no momento destinado à música lenta, quando eu dava minha tradicional volta de peito estufado, uma colega de sala, com quem eu frequentemente fantasiava meu primeiro beijo em meus pensamentos mais selvagens, veio perguntar se eu queria dançar —com a amiga dela. Era de esperar. Nada era feito de forma direta no flerte adolescente. Em todo caso, a resposta considerada mais apropriada era que “iria pensar”.   

Entretanto, já completando 13 anos de virgindade bucal, eu não estava na posição de escolher muito. Me aproximei da pretendente, que também usava aparelho móvel (mas não guardava no bolso, talvez por não ter bolso em seu vestido) e dançamos, na verdade basicamente ficamos rodando abraçados até o fim da música, que teve uma transição ousada do DJ Lindomar para “Falling to Pieces”, do Faith No More: “Back and forth, I sway with the wind”... 

Com a brusca mudança de ritmo, soltamos as cinturas um do outro e voltamos cada um para o seu lado, sem uma palavra. Não demorou para que a amiga trouxesse uma proposta para uma nova dança. Era a chance do tão aguardado desvirginamento bucal, era para isso que meu avô me levava todo domingo desobedecendo sinalizações em seu Kadett, era para isso que eu todo domingo  colocava meu aparelho no bolso e negligenciava o futuro do meu sorriso. Mas eu disse que “iria pensar”, e continuei sem beijar ninguém por muito tempo ainda depois desse dia.

Ilustração de Cyhthia Bonacossa para coluna de Furlan de 26.ago.2019.
Cyhthia Bonacossa

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