Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Demétrio Magnoli

O mercado não tem Comitê Central

É uma teia complexa de intercâmbios pela qual flui o sangue das economias

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O Povo (famélico) contra o Mercado (rico, ganancioso, especulativo) –o tema circulou desde o esboço da PEC da Transição, nos discursos de Lula, dos dirigentes petistas e da torcida uniformizada na imprensa e nas redes sociais. Neles, o Mercado emerge como um sujeito político: o inimigo do "governo dos pobres". É investimento especulativo (ops!) na ignorância do público.

A política populista, ao contrário do que se pensa, não nasceu na América Latina, mas nos EUA. Seu protagonista icônico foi Andrew Jackson, o sétimo presidente (1829-1837), eleito sob o lema "a vontade do Povo". De lá para cá, o discurso populista fixou-se no mítico confronto entre Main Street (a rua popular do comércio) e Wall Street (a rua dos bancos). A cristalização da imagem geográfica desdobrou-se nas procissões de charges que opõem o "homem comum" ao banqueiro concupiscente. O mercado (financeiro) tornou-se o retrato do Mal.

Tela mostra variação das ações na bolsa de Nova York - Michael Nagle - 19.mai.22/Xinhua

O mercado, porém, não tem endereço, rosto ou Comitê Central. Não é seis carinhas milionários da Faria Lima. É uma teia complexa de intercâmbios pela qual flui o sangue das economias de mercado (ou seja, de todos os países, inclusive a China, com exceções insignificantes como a Coreia do Norte).

São centenas de milhões de agentes econômicos espalhados pelo mundo. Da teia, participam desde magnatas das finanças até metalúrgicos aposentados cuja poupança repousa em fundos de investimentos. Você e eu, que temos modestos patrimônios aplicados em produtos financeiros, somos parte do tal mercado.

O mercado não é um partido. O paralelo melhor talvez seja com o trânsito: sua dinâmica reflete inumeráveis ações individuais derivadas do interesse próprio. Ninguém fala em nome do mercado (ou do trânsito). Há apenas os que tentam interpretá-lo, de modo objetivo ou interesseiro. Lula gabou-se muitas vezes de suas (reais ou supostas) façanhas econômicas, "comprovando-as" por menções a altas na Bolsa. No discurso populista, o mercado só é malvado quando pune os atos do governo populista.

O mercado é uma bússola imprecisa, tendente a bruscas oscilações determinadas por ataques especulativos e movimentos de manada. Contudo, num horizonte mais extenso, sua agulha revela as direções corretas. Quando Lula 2 e Dilma 1 ignoraram a bússola, o Brasil ingressou na areia movediça de uma depressão histórica. No fim da linha, o líder populista tira dos pobres, com a mão direita, o que lhes deu com a esquerda.

O mercado não tem ideologia. Ele condenou a PEC Kamikaze, mesmo com a ultra-oportunista limitação temporal dos gastos extras. O que nunca veio foi a punição política, pelo voto dos parlamentares. É que a indômita oposição, PT incluído, preferiu a adesão.

O mercado sem ideologia apeia governos, inclusive da direita ultraliberal. A prova mora no Reino Unido e chama-se Liz Truss. Seu gabinete thatcherista, que jurava amar o mercado, durou 49 dias. O Povo ("unido, jamais será vencido") nunca saiu às ruas para derrubá-lo. A queda humilhante começou quando anunciou-se um pacote de corte de impostos (especialmente para os ricos) baseado em emissão de dívida pública. O mercado reagiu, recusando-se a comprar ativos em libras. Caput.

O mercado move-se ao sabor de fatos: não se impressiona com declarações balofas, principalmente as falsas ("sempre, nos meus governos, guiei-me pela responsabilidade fiscal"). "Nunca vi mercado tão sensível como o nosso", reclamou Lula, fazendo eco a Truss. A torcida uniformizada foi atrás, cumprindo o papel subordinado que lhe cabe. A arrogância é péssima conselheira, ainda mais no atual cenário econômico internacional. O mercado topa o Bolsa Família e a extinção do teto de gastos –mas com uma pesada âncora fiscal.

Que ninguém se engane: o camarada Lira, neo-aliado, pulará fora de um barco à deriva. Melhor prestar atenção na agulha da bússola.

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