Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Demétrio Magnoli

Meios e fins

Os fins justificam os meios, assegura a crença de pessoas que se imaginam moralmente superiores

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"O tema dessa campanha não é economia, são os temas propostos por Bolsonaro, o que significa que o presidente venceu o debate desta eleição". Ciro Nogueira, ministro da Casa Civil, não erra no diagnóstico. Na TV e nas redes sociais, a campanha de Lula emula a linguagem do bolsonarismo. Segundo a síntese do ministro, "Lula não está lutando no campo dele; está travando uma eleição no campo adversário".

A gosma oriunda da campanha bolsonarista espalhou-se por toda a comunicação eleitoral, dos dois lados. Sob o "efeito Janones", a campanha lulista transitou da qualificação de "genocida", aplicada ao presidente desde a pandemia, para sugestões de que ele teria inclinações ao canibalismo e à pedofilia. Jogo empatado? Diferentes pesquisas, que registram discretas quedas nos índices de rejeição a Bolsonaro, indicam que não. O jogo "no campo adversário" sempre serve ao adversário – eis uma regra universal da política.

O ex-presidente Lula (PT) e o presidente Jair Bolsonaro (PL) - Marlene Bergamo - 16.out.22/Folhapress

A interpretação de texto, mesmo elementar, evidencia níveis deploráveis de distorção. Na entrevista antiga ao New York Times, Bolsonaro pretendia associar (falsamente) indígenas brasileiros à prática do canibalismo e impressionar o interlocutor exibindo-se (pateticamente) como tolerante à diversidade cultural.

Já as declarações do presidente sobre as meninas venezuelanas, expressas na sua vulgaridade habitual, simplesmente atestam arraigados preconceitos, tanto sobre mulheres quanto sobre refugiados. O "janonismo", porém, escolheu acusar o presidente de ser um potencial devorador de índios e um adepto, real ou virtual, da pedofilia.

Os expedientes tóxicos do "janonismo" não comoveram o eleitorado. Entretanto, entusiasmaram comentaristas "progressistas" engajados, aberta ou veladamente, na campanha lulista. A turma, muito culta, nada entendeu sobre a relação entre meios e fins.

Os fins justificam os meios, assegura uma crença ingênua adotada por pessoas que se imaginam moralmente superiores. De fato, os meios qualificam e moldam os fins. O "carluxismo" é um meio eficiente para produzir um governo extremista, inclinado ao preconceito e propenso ao golpismo. O "janonismo", imagem espelhada do "carluxismo", não é um meio apropriado para gerar um governo democrático, capaz de respeitar a pluralidade social e a divergência política.

O PT não é neófito na prática de campanhas difamatórias. Nos idos de setembro de 2014, operando em nome de Dilma Rousseff, João Santana montou a célebre peça de TV na qual Marina Silva expropriava a comida dos pobres, transferindo-a aos banqueiros. O recurso à linguagem do esgoto funcionou –e a política brasileira enveredou por um labirinto escuro.

O paralelo é, contudo, imperfeito. A propaganda imunda de 2014 surtiu efeito pois situava-se, ainda, nos limites da esfera da política: o alvo não era a pessoa da candidata, mas sua proposta de conceder independência ao Banco Central. Hoje, o "janonismo", imitação do "carluxismo", move-se no terreno da difamação pessoal.

Numa ofensiva recente, a campanha de Lula divulga um vídeo no qual Bolsonaro homenageia Alfredo Stroessner, acompanhado pela notícia de que o ex-ditador paraguaio era um "pedófilo que mantinha meninas como escravas". No caso, o tema não é exatamente a ditadura, mas a pedofilia. A absorção da linguagem bolsonarista tem implicações que ultrapassam o 30 de outubro.

A vida política não se encerra, apoteoticamente, no segundo turno. Depois dele, o Congresso votará leis relevantes, o STF pronunciará sentenças cruciais, os eleitores voltarão às urnas em novas eleições municipais, estaduais e federais. Sempre será possível asseverar que algo decisivo –inclusive a democracia– pende por um fio. A alegação utilizada para justificar o jogo sujo "no campo adversário" ressurgirá em múltiplas oportunidades. O bolsonarismo terá triunfado –mesmo após a derrota.

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