Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Demétrio Magnoli

As Catilinárias e o peixão

Discurso hiperbólico conta pontos na arena da concorrência política, mas tem consequências imprevistas

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"E devemos nós, que somos os cônsules, tolerar Catilina, abertamente desejoso de destruir o mundo inteiro pelo fogo e a chacina?" Catilina urdia um golpe de Estado, não "destruir o mundo inteiro" como discursou Cícero diante do Senado romano em 8 de novembro de 63 a.C. As Catilinárias figuram na origem de uma tradição de dois milênios de retórica hiperbólica. O método serviu ao propósito de expor a conspiração na Roma antiga. Não serve, contudo, para proteger a democracia no Brasil de hoje.

Atos golpistas, vandalismo ou terrorismo –o que aconteceu em Brasília no 8 de janeiro? A nota conjunta dos presidentes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário utilizou as três classificações indiferenciadamente. A imprensa foi atrás. Mas elas não são equivalentes. Golpismo, sim, ainda que caótico: a finalidade explícita era acender a faísca de um golpe militar. Vandalismo, claro: eis uma descrição factual, que complementa a anterior. Mas terrorismo?

Vândalo quebra vidraça do Palácio do Planalto, no domingo (8) - Gabriela Biló - 8.jan.23/Folhapress

Na véspera do Natal, a polícia desativou um artefato explosivo nos arredores do aeroporto da capital. Aquilo foi uma tentativa de atentado terrorista, provando do que são capazes as franjas extremas do bolsonarismo. Já os eventos do 8/1 não se enquadram em nenhuma das definições teóricas de terrorismo, nem na (confusa) Lei Antiterrorismo brasileira. Por que, então, gritar "terrorismo"?

O discurso hiperbólico conta pontos na arena da concorrência política –e, nessa era de redes sociais, fabrica "likes" em bolhas ideológicas. Tem, porém, consequências imprevistas –ou, às vezes, desejadas mas propositalmente ocultadas. Quer um intercâmbio bom para os dois lado? Acuse Bolsonaro de genocídio, não de crimes contra a saúde pública. Você ganha urros orgiásticos de aprovação dos seus; ele terá, em troca, a certeza da impunidade. O caso do terrorismo é similar.

Ações desarmadas de massa dirigidas contra prédios públicos vazios que terminam com depredações de patrimônio não são terrorismo, mesmo quando pretendem deflagrar um golpe militar. Nossa Lei Antiterrorismo, adotada sob críticas de parte da esquerda, foi redigida de modo a evitar sua aplicação contra movimentos sociais cujos atos que possam resultar em danos patrimoniais. O único jeito de enquadrar as hordas de vândalos bolsonaristas no tipo criminal seria reescrever a lei segundo as propostas sugeridas, lá no início, pela direita.

Foram presos, às centenas, os bagrinhos estúpidos que protagonizaram as destruições em Brasília. Se acusados de terrorismo, nenhum deles experimentará a condição de réu. Vale o mesmo para os peixes maiores, ainda leves e soltos: incentivadores, articuladores e financiadores dos atos golpistas. A proteção da ordem democrática exige escalar a ladeira da punição judicial, colocando-os atrás das grades. Esqueça a catilinária: isso demanda a acusação certa.

O Brasil ama o esporte da conciliação por cima: a tal "união nacional". Luís Roberto Barroso falou, claro, em "terrorismo", para em seguida, indagado sobre a conexão entre Bolsonaro e o 8/1, alertar: "Não vamos atirar pedras". É o roteiro da punição dos bagrinhos por vandalismo, o crime menor, e da impunidade para os peixões.

O maior dos peixes estava fora da cena geográfica do crime. Ao que tudo indica, também não estava na cena operacional. Contudo, a acusação correta o coloca na cena política dos atos golpistas: Bolsonaro criou, ao longo de seu (des)governo, a trama narrativa que culminaria no 8/1. O caminho que conduz à eventual responsabilização criminal do ex-presidente parte daí e requer uma investigação eficaz sobre seus laços com os coordenadores e financiadores da investida contra a ordem democrática.

Sem a punição legal dos peixões, o golpismo sobreviverá em estado de latência. Nossos Cíceros, porém, preferem a oratória grossa e vazia à ação judicial certeira.

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