Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Demétrio Magnoli

As utilidades de Trump

Nos EUA, Lula e Bolsonaro têm o mesmo candidato, mas só o segundo pode pronunciar seu nome

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Viktor Orbán, Putin e Lula não votam nas eleições americanas, mas proclamaram suas preferências. O primeiro-ministro húngaro declarou-se por Trump, uma manifestação sincera e interessada. Putin e Lula declararam-se por Biden, em gestos de ilusionismo político movidos por razões distintas.

Orbán visitou os EUA sem se reunir com Biden: foi direto a Trump, rompendo o mais básico protocolo diplomático. Líder da direita nacionalista europeia, ele professa as mesmas ideias que o virtual candidato republicano.

No plano internacional, mantém uma pouco discreta parceria com a Rússia e critica o apoio da União Europeia à Ucrânia. No plano ideológico, compartilha com Putin o conceito da "nação de sangue" apoiada nos pilares da família tradicional e da religião cristã. O triunfo de Trump asseguraria a seu projeto autoritário e à direita conservadora do Velho Mundo um aliado poderoso, capaz de contrabalançar as pressões das democracias europeias.

O ex-presidente Donald Trump em evento em Miami, na Flórida
O ex-presidente Donald Trump em evento em Miami, na Flórida - Giorgio Vieira - 10.mar.23/AFP

"Para nós, quem é melhor, Biden ou Trump?", perguntou a Putin um jornalista amestrado russo. A resposta surpreendeu: "Biden. É mais experiente, previsível, um político ao velho estilo". Mentira evidente, proferida de cara limpa. Biden classificou Putin como "ditador assassino", um "puro bandido" que nutre "cobiça covarde por territórios e poder". Mas o "puro bandido" tem motivos mais sérios para torcer por sua derrota.

A sobrevivência do regime de Putin depende do desenlace da guerra imperial na Ucrânia. Por isso, mais ainda que em 2016, Trump é o candidato dos sonhos de Putin. O republicano despreza a Otan e, no seu encontro com Orbán, prometeu cortar totalmente a ajuda dos EUA aos ucranianos.

A resposta falsa à indagação encenada cumpre a função política de confundir o debate eleitoral sobre política externa nos EUA: a cada vez que for acusado de operar como despachante dos interesses de Putin, Trump se refugiará na declaração do chefe do Kremlin. O líder russo falou para o eleitorado dos EUA, ofertando material aos marqueteiros republicanos.

Lula seguiu a linha de Putin: "Eu obviamente acho que o Biden é mais garantia para a sobrevivência do regime democrático no mundo e nos EUA". Contudo, ao contrário do líder russo, o presidente brasileiro tem escassa relevância no debate eleitoral americano. Seu apoio, igualmente insincero, não se destina ao público dos EUA, mas aos brasileiros. Justamente por isso, não poderia dizer coisa diferente.

No Brasil, o nome de Trump está indissoluvelmente associado ao de Bolsonaro –e a polarização com Bolsonaro é o talismã que Lula carrega no bolso. Tudo que de reprovável faz o governo, inclusive as iniciativas mais ignóbeis derivadas da parceria com Lira, encontra legitimação retórica no alegado risco da "volta de Bolsonaro". Democracia versus autoritarismo –eis o mantra lulista.

Palavras enganosas. Lula pouco se importa com a "sobrevivência do regime democrático no mundo", como atestam os casos de Cuba, Venezuela e Nicarágua. Sobretudo, porém, sob o ponto de vista dos conceitos de política internacional de seu governo, Trump funciona bem melhor que Biden.

A política externa brasileira subordina-se à ideia de uma coalizão anti-ocidental estruturada ao redor dos Brics –ou seja, basicamente, da China e da Rússia. "Sul Global" é a fórmula que expressa esse conceito, uma atualização da tradição terceiro-mundista. A solidariedade (mal) disfarçada à guerra de agressão russa decorre dessa visão geopolítica de fundo.

O neo-isolacionismo de Trump –ou seja, sua inclinação a romper a aliança erguida no pós-guerra entre EUA e Europa– adapta-se às prioridades internacionais da esquerda petista. Um "imperialismo" trancado na sua fortaleza nacional: eis o cenário ideal para Lula. Por isso, nos EUA, Lula e Bolsonaro têm o mesmo candidato –mas só o segundo pode pronunciar seu nome.

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