Desigualdades

Editada por Maria Brant, jornalista, mestre em direitos humanos pela LSE e doutora em relações internacionais pela USP, e por Renata Boulos, coordenadora-executiva da rede ABCD (Ação Brasileira de Combate às Desigualdades), a coluna examina as várias desigualdades que afetam o Brasil e as políticas que as fazem persistir

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Desigualdades
Descrição de chapéu enem

É preciso retomar e aprofundar a democratização do ensino superior no Brasil

Apesar de a maior parte de redução das desigualdades terem melhorado até 2015, a partir de 2016 esses indicadores desaceleraram, não por obra do acaso, mas por consequência de um projeto político; com investimento, políticas públicas e democracia, é possível retomar os avanços

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Bruno Lazzarotti Diniz Costa

Doutor em sociologia e política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é coordenador do Observatório das Desigualdades da Fundação João Pinheiro.

Clara Diniz

Graduanda em administração pública na Fundação João Pinheiro, trabalha na diretoria de gestão do Cadunico e colabora com o Observatório das Desigualdades nas áreas de educação e segurança pública.

O ensino superior no Brasil, quando comparado à experiência internacional, é marcado por três características: acesso restrito, com alta desigualdade –tanto maior quanto maior o prestígio social do curso– e, em parte por isto, prêmio salarial e ocupacional elevados.

Historicamente, no país, o ensino superior sempre foi um meio pelo qual os segmentos mais bem posicionados da sociedade (especialmente as pessoas brancas, de maior renda, das regiões Sul e Sudeste) transmitiam de uma geração a outra sua posição privilegiada, ao mesmo tempo em que se interditava aos mais pobres as mesmas oportunidades.

Alunos fazem fila para entrar no restaurante da USP - Bruno Santos - 4.out.2021/Folhapress

De fato, em 2018, os graduados no Brasil tinham rendimentos em média 140% superiores aos dos não graduados. Mesmo após a significativa expansão do acesso neste século, somente 21,3% dos jovens brasileiros de 18 a 24 anos estavam matriculados no ensino superior naquele ano, em contraposição a 30% na Colômbia, 40% na Argentina e 45% na média da OCDE. Na pós-graduação, os números não são melhores: entre as pessoas de 25 a 64 anos, somente 1% têm o título de mestre em nosso país, enquanto a média da OCDE é de 13%. A distribuição de vagas tampouco é equânime: enquanto os 10% mais ricos representam 15% dos alunos das universidades públicas, os 10% mais pobres representam apenas 4% dos alunos. E, ainda que 54% da população brasileira seja negra, apenas 46% dos alunos do ensino superior se declaravam pretos ou pardos em 2019. Ou seja, as universidades brasileiras, inclusive as públicas, continuam sendo mais restritas, mais brancas e elitizadas do que deveriam.

Por que defender, então, a ampliação de instituições e políticas que ainda são tão desiguais? Porque esta é apenas parte da história. Até agora apresentamos uma fotografia do ensino superior no Brasil, mas precisamos olhar o filme completo. Estamos longe de ter democratizado o acesso como precisamos, mas já estivemos bem pior, e o importante é assegurar e aprofundar os caminhos para uma melhoria que apenas deu seus primeiros passos.

No ano 2000, havia 2,8 milhões de jovens matriculados no ensino superior, representando 9% da população total dessa faixa etária; em 2017, esse número já ultrapassava os 8 milhões e abarcava quase 25% dos jovens. Em 2001, as pessoas negras eram 30% dos universitários; em 2017, já eram 51%. Ainda em 2001, os 60% mais pobres da população não representavam nem 10% dos matriculados nas universidades; em 2018, passaram a representar 35%. A universidade vinha se ampliando e se tornando maior, mais diversa e mais justa.

Longe do ideal de justiça, mas mais próxima do que em qualquer momento anterior, a universidade brasileira começou a se democratizar em consequência de três conjuntos de políticas de educação superior. A primeira foi a expansão do número de vagas: entre 2001 e 2017, houve um aumento de mais de 185%, seja via Reuni, programa de expansão e interiorização das instituições federais, seja através do incentivo à oferta de bolsas completas ou parciais pelo setor privado: PROUNI.

A segunda foi a democratização dos mecanismos de entrada, principalmente a partir da criação do Enem e posteriormente do Sisu, possibilitando que estudantes se inscrevessem para qualquer universidade pública do país gratuitamente e sem sair de sua cidade –o exame atingiu, em 2015, o recorde de 8,6 milhões de inscritos.

Por fim, foi crucial a importância das cotas sociais e raciais para garantir um patamar mínimo de equidade. Para além das inumeráveis conquistas de alunos cotistas, para aqueles que defendem a justiça social, basta dizer que, em 2018, a proporção entre jovens negros e brancos dentro das universidades foi a mesma que na sociedade brasileira.

Além das políticas voltadas para a educação superior, o aumento real do salário mínimo e da renda dos mais pobres reduziu a pressão pela contribuição para a renda familiar e permitiu que alunos cotistas pudessem se dedicar mais à aprovação e frequência em cursos de carga horária tradicionalmente integral, como as engenharias, o direito e a medicina. Na verdade, foi nestes cursos –mais elitizados e de maior prestígio social– que o impacto das cotas sociais e raciais foi ainda mais expressivo. Os avanços só foram possíveis, portanto, por uma combinação de políticas de ampliação das vagas e de democratização da entrada.

Apesar de a maior parte dos indicadores de expansão das vagas e de redução das desigualdades terem melhorado até 2015, a partir de 2016 esses indicadores desaceleraram. Em alguns casos, como o da proporção de negros e brancos nas universidades, os valores voltaram a se inverter, com o número de brancos matriculados ultrapassando o número de negros em 2018. No caso do Enem, as inscrições caíram mais de 48% entre 2015 e 2020. Para além dos efeitos da pandemia, essa queda também foi extremamente desigual. Enquanto a queda no número de inscritos brancos foi de 35%, para negros (pretos e pardos) a queda foi de mais de 51% e, para indígenas, de 54%. No que diz respeito à renda, a partir de 2016, a diferença na proporção de matrículas dos mais ricos e dos mais pobres parou de cair, o que significa que as desigualdades param de diminuir nas universidades.

Essa paralisação da democratização das universidades (2016-2020) não foi coincidência, mas um projeto (ou a falta dele). A partir de 2015 já se inicia um processo de ajuste fiscal na educação, com cortes nas universidades. Mas é a partir de 2016 (após o golpe parlamentar que depôs a presidenta eleita) que se inicia o desmonte do Fies, o fim do Reuni e, consequentemente, o fim da política de expansão inclusiva das universidades. A crise econômica, seguida de estagnação e diminuição dos investimentos públicos, aumenta o desemprego entre jovens. Por fim, em 2018, intensifica-se um projeto de governo federal calcado na anticiência e na demonização das universidades, que serve de justificativa para decisões autoritárias e mais cortes nas universidades.

A universidade brasileira está longe de ser o ambiente plural e justo que deveria ser, mas, com investimento, políticas públicas e democracia, é possível e é preciso retomar os avanços. Em 1986, Darcy Ribeiro perguntou “universidade para quê?”. Trinta anos depois, Djamila Ribeiro afirmou que as “cotas raciais [são necessárias] porque esse país possui uma dívida histórica para com a população negra”. Hoje, é preciso continuar perguntando: “universidade pública para quem?”. E continuar afirmando: para todos aqueles negros, pobres, indígenas, favelados e LGBTQIA+ que esse país negligenciou por 520 anos.

REFERÊNCIAS:

BATISTA, I., OLIVEIRA, A., WELLE, A. Educação Superior Pública sob Ameaça in: Cadernos da Reforma Administrativa. FONCATE, Brasília, 2021.

SENKEVICS, A. A expansão recente do ensino superior: cinco tendências de 1991 a 2020. Cadernos de estudos e pesquisas em políticas educacionais, v. 3, n. 4, São Paulo, 2021.

SOUZA, V. Enem 2021: número de pretos, pardos e indígenas inscritos cai mais de 50%. G1, São Paulo, 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/enem/2021/noticia/2021/08/27/enem-20 21-cai-negros-pardos-indigenas-inscritos.ghtml. Acesso em: 09 set. 2021.

OCDE. Education at a Glance, 2021.

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