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Bruno Caramelli e Fernando Aith

Autonomia médica, erro médico e Covid-19

'Tratamento precoce' não se justifica e é passível de responsabilização jurídica

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Bruno Caramelli

Cardiologista, é professor da Faculdade de Medicina da USP

Fernando Aith

Advogado, professor titular da Faculdade de Saúde Pública da USP e diretor do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa/USP)

As descobertas da CPI da Covid relacionadas à Prevent Senior provocam debates e perplexidade aos brasileiros. Os fatos revelam que a operadora incentivava e até obrigava seus médicos a prescreverem o chamado “tratamento precoce” para a Covid-19 sem comprovação científica de sua eficácia.

A prescrição do “tratamento precoce” é protegida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), cuja diretoria atual ampara a conduta na “autonomia médica”, englobando a prerrogativa da liberdade de prescrição do médico.

A extensão e o conceito de “autonomia médica” são passíveis de controvérsias, porém o termo possui características que o diferenciam claramente do “erro médico”. Autonomia médica é fundamental para garantir o exercício da medicina e a melhor proteção ao paciente, mas tem limites. Autonomia médica jamais pode ser usada como excludente de ilicitudes, uma vez que se justifica apenas em nome do interesse público na prática médica e, por essa razão, pressupõe direitos e responsabilidades.

O Código de Ética Médica (CEM) brasileiro define autonomia médica como o direito de exercer sua profissão sem ser obrigado a prestar serviços contra sua consciência, excetuadas situações de urgência ou quando sua recusa puder causar danos à saúde do paciente.

Além disso, o CEM veda ao médico permitir que outros interesses interferiram na escolha dos melhores meios de prevenção, diagnóstico ou tratamento disponíveis e cientificamente reconhecidos. O código também proíbe o médico de divulgar, fora do meio científico, tratamento ou descoberta cujo valor ainda não esteja expressamente reconhecido cientificamente.

O Código Penal e o Código Civil brasileiros tipificam como ilícitas as condutas médicas dolosas ou culposas que possam provocar danos aos pacientes. O médico não tem autonomia para errar de forma consciente, com dolo. Também não tem autonomia para errar por meio de práticas culposas, como a imperícia, a imprudência ou a negligência. A medicina é uma ciência que funciona com base em rígidos protocolos e diretrizes terapêuticas; é dever do médico conhecê-los e atualizar-se constantemente.

A ciência médica, por não ser exata, protege a autonomia para prescrever tratamentos que, ainda que não comprovados cientificamente, possuem potencial de beneficiar o paciente. Tais práticas heterodoxas devem estar pautadas em evidências e acompanhadas do consentimento prévio, livre e esclarecido do paciente. É o caso, por exemplo, do uso de medicamentos “off label”. Enquanto houver promessa de benefício ao paciente e evidências que justifiquem uma conduta médica fora dos protocolos e diretrizes terapêuticas, a autonomia médica permite a adoção de condutas que possam curar ou melhorar a saúde.

Entretanto, a partir do momento em que há evidências científicas de que tais condutas não trazem benefício e podem causar malefícios ao paciente, verifica-se o erro médico caracterizado pela imperícia e imprudência.

A atual diretoria do CFM emitiu, em abril de 2020, o parecer 04, que autoriza o uso de cloroquina e hidroxicloroquina para a Covid-19, condicionado a critérios médicos e ao consentimento do paciente. No início da pandemia o parecer poderia ser justificado, mas hoje, após estudos científicos revelarem a ineficácia destes tratamentos, não mais. No entanto, a diretoria do CFM mantém esse posicionamento. Não por acaso, o CFM foi tristemente saudado pelo presidente da República na Assembleia Geral da ONU como defensor do tratamento precoce e ineficaz.

Atualmente, a prescrição do “tratamento precoce” não se justifica mais tecnicamente e pode caracterizar erro médico passível de responsabilização jurídica.

A sustentação do parecer 04/2020 pela diretoria do CFM motivou uma representação junto ao Ministério Público Federal pedindo sua nulidade, pois mantê-la significa defender o erro médico, situação agravada por infrações éticas quando operadoras como a Prevent Senior permitem que outros interesses interfiram na escolha dos médicos pelo melhor tratamento e propagam tratamentos não comprovados.

Espera-se que a diretoria do CFM revogue urgentemente o parecer para evitar a indução ao erro médico e a violações éticas. Caso não o faça voluntariamente, espera-se que o sistema de Justiça atue, visando impedir novos casos como o que estamos testemunhando, repleto de mortes e sofrimento, além de gerar medo e desconfiança nas relações médico-paciente.

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