Desigualdades

Editada por Maria Brant, jornalista, mestre em direitos humanos pela LSE e doutora em relações internacionais pela USP, e por Renata Boulos, coordenadora-executiva da rede ABCD (Ação Brasileira de Combate às Desigualdades), a coluna examina as várias desigualdades que afetam o Brasil e as políticas que as fazem persistir

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Desigualdades

Para a questão racial não é transição, mas restauração e construção

O ambiente de absoluto desprovimento em que se encontra a juventude negra requer uma estratégia multidisciplinar

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Helio Santos

Escritor, ativista e presidente do Conselho da Oxfam Brasil

Quando se fala em transição, pressupõe-se que haja uma política a ser continuada. No que diz respeito às questões de raça e gênero, o governo que se finda mais destruiu do que construiu. Para termos um consistente projeto para a equidade racial, requer-se recuperar três secretarias: Direitos Humanos, Políticas para as Mulheres e Promoção da Igualdade Racial. Espera-se, agora, que sejam ministérios, não secretarias com status de ministério. Há mais ministérios a serem considerados: restaurar o da Cultura e construir o da Segurança Pública, prometido na campanha.

Na coletânea recém-lançada pela Editora Jandaíra "A Resistência Negra ao Projeto de Exclusão Racial: Brasil 200 anos (1822-2022)", a qual tive o prazer de organizar, diversos aspectos das relações raciais foram abordados pelos 34 ensaístas que compuseram o trabalho —18 mulheres, mais 16 homens. Com base no que foi abordado por aquele grupo que representa uma parcela relevante da intelectualidade negra brasileira, apresentei um novo acordo para a equidade (Naper). São dez subtemas que podem funcionar como um antídoto importante contra os efeitos do racismo no país e que apresento de forma bem sintética a seguir.

Movimento estudantil e o movimento negro comemoram a adoção de cotas sociais e raciais pela Universidade de São Paulo (USP), decidida em reunião do Conselho Universitário
Movimento estudantil e o movimento negro comemoram a adoção de cotas sociais e raciais pela Universidade de São Paulo (USP), decidida em reunião do Conselho Universitário - Divulgação Ubes

O ambiente de absoluto desprovimento em que se encontra a juventude negra requer uma estratégia multidisciplinar. Cabe uma ação inédita e ousada em que, além dos três níveis da federação, participe o setor judiciário, que tem sido reiteradamente omisso. Reivindicamos um Plano Nacional da Juventude Negra Viva (1). Refiro-me a um potente contraponto à necropolítica brasileira que ceifa no nascedouro da nossa juventude.

O ensino médio público precisa ser apoiado por bolsas de estudo e ter a excelência como foco para reter a evasão predatória que hoje acontece (2). Os egressos destes cursos serão estimulados a continuar seus estudos nas universidades públicas ou em cursos técnicos de alta especialização, sempre com auxílio financeiro e apoio pedagógico adequados.

A maior participação de cotistas raciais e sociais nas universidades públicas não pode ensejar uma tradição nacional de sucatear os serviços públicos quando estes são ofertados ao andar de baixo da sociedade. O Novo Acordo aponta também para a necessidade de ampliação do apoio financeiro, pedagógico e tecnológico àquelas instituições (3). Num sentido contrário ao sucateamento: vamos radicalizar na excelência delas. Nos próximos quatro anos —2023/2026— o ensino infantil precisa estar universalizado no Brasil (4).

Trata-se de uma política de cunho amplo, mas que alcança, sobretudo, as crianças negras que, em sua maioria, estão fora desse necessário guarda-chuva, que fortalece o indivíduo ao longo de toda a sua vida. No Brasil, mais de 17 milhões de pessoas vivem em cerca de 6.500 favelas. As Políticas Afirmativas Localizadas (PAL) são iniciativas de base territorial em que, além da regeneração urbanística e sanitária das regiões, propõe a implementação de consistentes políticas: de habilitação profissional com ajuste na defasagem escolar; de geração de renda e também de cunho esportivo e cultural (5).

O país nos deve um Programa de Apoio Integral à Família de Risco (Paifar) (6) em que ao mesmo tempo que se nutre as pessoas com alimentos adequados, estas são preparadas para a sua emancipação social, econômica, profissional e psicológica. Apoio integral significa zelo, algo que esses grupos jamais tiveram por parte do Estado. Eu me refiro a um construto multidisciplinar com metas e gestão competente que não mitigue pobreza, mas que emancipe amplas parcelas da população.

Ainda nessa linha de proposição, passou-se da hora da adoção das Políticas Afirmativas Financeiras (PAF) (7). As PAF se destinam a um amplo leque de utilizações pois o dinheiro tem a singularidade de possibilitar diversas oportunidades. Para a implementação das PAF deverá constar a reserva de uma parcela do orçamento de investimento do BNDES para financiar iniciativas voltadas para a equidade racial. Ainda nessa política de amplo alcance, deve-se pensar em dar cobertura à avassaladora população trabalhadora informalizada que teve sua origem no abandono aos ex-escravizados no dia 14 de maio de 1888.

Falta um plano com a envergadura requerida para operar um programa que envolva tantas pessoas (8). Até a chegada da Covid-19, esses incríveis 40 milhões de trabalhadores estiveram invisíveis —quase uma Argentina. Medida disruptiva deve também ser endereçada à Fundação Cultural Palmares, cujo orçamento deverá ser definido por um percentual do valor destinado ao Ministério da Cultura, que precisa ser reativado (9).

Concluindo, a política de cotas raciais das universidades públicas federais, programada para passar por revisão no presente ano, deve ser prolongada para 2042 e não para 2032 como vem sendo proposto. Do mesmo modo, a política de cotas para os concursos públicos federais, que vale até 2024, precisa ser ampliada para 2044. A razão é simples: ações tão tardias somente causarão impacto numa sociedade tão apartada racialmente, como a nossa, se perdurarem por um tempo adequado para que possam consolidar uma mudança efetiva. Trinta anos é o prazo que sempre considerei adequado para as cotas raciais (10).

Relatório de 2017 feito pela Oxfam Brasil revela que se forem mantidas as atuais condições de inclusão da população negra, a equiparação da renda média de negros e brancos só se dará em 2089. Precisamos encurtar esse tempo. Por isso se espera do governo Lula-Alckmin uma gestão que considere as especificidades de raça e de gênero de forma transversal; isto é, em todos os setores. Esse foco é peça-chave para a regeneração modernizadora que propiciará ao Brasil um desenvolvimento com sustentabilidade moral. Não é pouca coisa para um país tão tardio.

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