Desigualdades

Editada por Maria Brant, jornalista, mestre em direitos humanos pela LSE e doutora em relações internacionais pela USP, e por Renata Boulos, coordenadora-executiva da rede ABCD (Ação Brasileira de Combate às Desigualdades), a coluna examina as várias desigualdades que afetam o Brasil e as políticas que as fazem persistir

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Desigualdades
Descrição de chapéu machismo

A justiça reprodutiva como instrumento de combate às desigualdades sociais e raciais

Conceito evidencia iniquidades, ausência de políticas públicas para combatê-las e dificuldades ao acesso a direitos como aborto e maternidade segura

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Letícia Rocha

Cientista da Religião e membra da equipe de Católicas pelo Direito de Decidir

Em setembro, em que se comemora o Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto no mesmo dia (28) em que é comemorada a promulgação da Lei do Ventre Livre, trazemos para a reflexão o tema da justiça reprodutiva e sua íntima relação com as desigualdades sociais e raciais, com graves consequências para a vida das mulheres e meninas de nossa sociedade.

O tema tem adquirido muita relevância nos círculos feministas no Brasil, onde mulheres, desde o seu lugar, organização, coletivos e ativismo, têm desenvolvido suas ações tendo presente essa estratégia. Mas a perspectiva da justiça reprodutiva foi introduzida pela primeira vez em 1994, na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo. Isso não quer dizer que antes não houvesse ações realizadas por mulheres que poderiam ser classificadas como iniciativas em defesa da justiça reprodutiva, como é o caso do trabalho de Geledés – Instituto da Mulher Negra, organização pioneira na luta e defesa dos direitos das mulheres negras, entre outros.

Mas o conceito como tal foi introduzido por um grupo de ativistas feministas negras liderado pela norte-americana Loreta Ross, que a reivindicou como estratégia de mudança necessária para a sociedade e para a vida de mulheres e meninas —desde sempre as principais vítimas de atrocidades cometidas pelos sistemas patriarcal, capitalista e colonial moderno.

Mulher negra grávida
A justiça reprodutiva evidencia elementos como dificuldades ao acesso a direitos como aborto e maternidade segura - DCStudio/Freepik

Ao falar de justiça reprodutiva estamos não somente trazendo um conceito, mas uma ferramenta poderosa, com capacidade para complexificar os discursos aprendidos acerca de direitos sexuais e direitos reprodutivos em territórios que experimentaram em seu bojo os nefastos processos de colonização, assim como naqueles que ainda hoje vivem na colonialidade.

A justiça reprodutiva busca reposicionar e descolonizar as narrativas sobre direitos reprodutivos justamente porque procura racializar as discussões ao trazer para o debate assuntos que foram ignorados pelos feminismos brancos. Nos oferece uma importante chave epistemológica, social e histórica que permite articular diferentes dimensões da vida. Evidencia elementos como desigualdades sociais e raciais, desigualdades de gênero, ausência de políticas públicas, dificuldades ao acesso a direitos como aborto e maternidade segura.

No centro de tudo isso encontra-se o conceito de interseccionalidade (Collins e Bilge, 2021). Ou seja, a estratégia da justiça reprodutiva demonstra como a estrutura da disparidade está atravessada por questões de raça, gênero, religião, classe, sexualidade, deficiência etc. e como todas essas influenciam o acesso a serviços e informações na sociedade, especialmente em nosso país, marcadamente caracterizado por inúmeras desigualdades sociais e pela ausência de políticas públicas que garantam acesso a serviços de saúde, educação, saneamento básico, segurança alimentar, entre outros.

Dentre os pontos nodais da justiça reprodutiva estão a liberdade e a autonomia para tomar decisões sobre o próprio corpo. Entretanto, no que diz respeito a esta dimensão, o que temos são injustiças que põem em xeque os direitos das mulheres e meninas aos seus corpos: estupros, violências e feminicídios, além da ausência de políticas que garantem uma maternidade digna, de contraceptivos para evitar a gravidez indesejada e de acesso ao aborto legal e seguro, que deveria ser garantido por qualquer sociedade democrática.

Rememoramos aqui o dia 28 de setembro, o dia de luta pela legalização e descriminalização do aborto em todo o território latino-americano e caribenho. Essa data foi instituída durante o 5º Encontro Feminista Latino-americano e Caribenho, realizado em 1990 em San Bernardo, na Argentina.

A opção por esse dia específico emerge do grupo de feministas brasileiras presentes, pois é nesta data que se celebra no Brasil a promulgação da Lei do Ventre Livre, em 1871, pela princesa Isabel. A lei definia que os bebês das mulheres escravizadas que nascessem a partir daquela data estariam livres. Para aquelas feministas participantes, o estabelecimento daquele dia significava "Liberdade de ventre, liberdade de escravos, legalização do aborto. Liberdade para as mulheres decidirem" (Blay e Avelar, 2019).

A condição da mulher preta escrava foi muito bem descrita pela ilustre ancestral Lelia Gonzalez. No período escravocrata brasileiro, os papéis imputados à mulher preta eram bastante determinados, e se resumiam basicamente a dois: a trabalhadora de eito e a mucama. As trabalhadoras de eito eram aquelas braçais, estimuladoras das fugas ou mesmo das revoltas com seus companheiros. À figura da mucama cabia os serviços domésticos, o cuidado com a casa grande, com os filhos das senhoras brancas, o que incluía a amamentação. Da mucama emerge a mãe preta, aquela que cuida e educa os filhos.

Vale destacar que, em ambas as funções, o direito à maternidade é inexistente. A ausência deste direito fazia com que muitas mulheres realizassem a interrupção voluntária da gravidez como única via possível para evitar que os filhos dos seus ventres tivessem o mesmo destino atroz.

Esta ideia da maternidade negra negada se reflete até os dias atuais ao presenciarmos um número elevado de mulheres racializadas que realizam procedimentos de abortos clandestinos e que têm suas vidas ceifadas. Quando não ocorre o óbito, muitas ficam com sequelas. Além disso, existe a violência obstétrica que as persegue no momento do parto.

Soma-se a isto o fato de seus filhos serem o alvo principal do encarceramento e morte pela violência do Estado, o que nos permite afirmar que o genocídio da população preta e pobre neste país segue seu curso. Diante disso, e agregando o olhar interseccional da justiça reprodutiva, podemos afirmar que atualmente o ventre das mulheres racializadas é livre?

Recuperar a origem deste 28 de setembro, principalmente o seu caráter racializado (elemento que tem sido esquecido), permite trazer para o centro da discussão os corpos que ainda não foram livres e que, por isso, ainda sofrem com as injustiças e com as desigualdades sociais e raciais no Brasil.

Esse tema será tratado no 2º Seminário Justiça e Religião: Modelos e Retratos do Brasil, organizado pela organização feminista Católicas pelo Direito de Decidir, a ser realizado entre os dias 13 e 15 de setembro de forma virtual e gratuita. Para inscrições e mais informações, acesse o site aqui.

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