Desigualdades

Editada por Maria Brant, jornalista, mestre em direitos humanos pela LSE e doutora em relações internacionais pela USP, e por Renata Boulos, coordenadora-executiva da rede ABCD (Ação Brasileira de Combate às Desigualdades), a coluna examina as várias desigualdades que afetam o Brasil e as políticas que as fazem persistir

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Desigualdades

Quilombolas: desigualdades e perspectivas no novo governo

Contra fome e iniquidade, são necessários dados e novos programas estruturantes

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Givânia Silva

Educadora quilombola e pesquisadora, mestre em políticas públicas e gestão da educação e doutora em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB). Cofundadora da Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas do Brasil (Conaq)

Os reflexos da herança da escravidão podem ser percebidos facilmente nas desigualdades entre os negros e os não negros e não indígenas no Brasil. A dominação de outros grupos sobre estes passa pela desterritorialização e pela apropriação indevida de seus corpos, mentes, saberes e territórios –colocados à disposição do capital, da moeda e da linguagem da colonização e da escravização–, que condenam tais grupos à pobreza e desumanização.

O Estado brasileiro tem dificuldade em reconhecer o papel dos movimentos sociais e em associá-los aos processos de luta e resistência negra e indígena e tenta ignorar, silenciar ou matar essas vozes, mesmo que estas ecoem de todos os cantos do Brasil.

Mas entender a situação dos quilombos no Brasil exige analisar, por um lado, suas lutas para garantir o acesso à terra como ponto de partida para o acesso às demais políticas públicas e, por outro, o papel do Estado brasileiro, sobretudo como ente promotor de violações de direitos constitucionais estabelecidos na Constituição Federal de 1988.

E, antes disso, é preciso compreender como a racialização da terra criou, fomentou e ampliou as desigualdades no Brasil entre negros e brancos, tendo como referência o período entre a Abolição da Escravatura, em 1888, e a Constituição Federal de 1988, quando os quilombos conquistam o direito à terra.

A pesquisa "Quilombos do Brasil: segurança alimentar e nutricional em territórios titulados" (Cadernos de Estudos, nº 20/2014), do Ministério do Desenvolvimento e Combate à Fome, identificou políticas públicas que deveriam chegar aos quilombos e que, até então, estavam apenas no papel, apontando ainda vários níveis de exclusão dos quilombolas.

À época, 75% da população quilombola vivia em situação de extrema pobreza, com baixíssima integração às redes de serviços públicos: somente 15% dos domicílios tinham acesso à rede pública de água, 5% à coleta regular de lixo (em 89%, o lixo doméstico era queimado) e apenas 0,2% estavam conectados à rede de esgoto e de águas pluviais. A existência de banheiro dentro de casa, outro indicador relevante de qualidade da habitação, era realidade em apenas um quarto das moradias; pouco mais da metade delas possuía o equipamento, mas situado fora da habitação; 21% não dispunham de banheiro.

Já o programa Luz para Todos levou energia elétrica a 90% dos territórios quilombolas, ainda que com fornecimento instável. Os programas que atingiam maior número de moradores eram o Bolsa Família (63%) e a Cesta Básica (58%) e representavam a única fonte de renda para 30% do universo pesquisado.

Com o advento da pandemia de Covid-19, esses índices pioraram, dado o estado de vulnerabilidade social em que as comunidades quilombolas se encontravam. A proliferação do vírus nos quilombos causou danos em muitos sentidos. A saúde, a educação, a segurança alimentar, o trabalho e a renda foram afetados de forma brutal. Com serviços de saúde precarizados, os quilombolas tiveram de se expor indo às cidades para buscar atendimento, momento em que muitos se contaminaram e morreram tentando acessar serviços básicos. Além disso, a falta de acesso (ou o acesso de péssima qualidade) à internet impediu que muitos estudantes participassem do ensino remoto e um número significativo deles acabou deixando os estudos.

Os dados de 2020 do Censo Escolar revelam que as escolas quilombolas são aquelas que possuem as piores condições. São 2.526 escolas quilombolas em todo o Brasil, nas quais estudam 275.132 alunos e atuam 51.252 docentes –uma queda de 10,1% em relação a 2019. As escolas quilombolas têm índices significativamente menores de acesso a salas de leitura/bibliotecas quando comparadas a os outros modelos de gestão das escolas no Brasil. Além disso, apenas 11,4% possuem quadra esportiva (coberta ou não coberta), apenas 13,1% das escolas têm computador e só 15,6% têm internet. Outros dados do censo detalham ainda mais tais desigualdades.

É preciso atualizar esses dados para que possamos produzir mais informações e indicadores. Entre os muitos danos que o governo Jair Bolsonaro causou aos quilombolas, alguns dos mais significativos foram a retirada de circulação de dados que existiam e o desmantelamento dos órgãos e políticas públicas voltadas a esses grupos. Se essa pesquisa for atualizada, certamente vamos perceber que as mais prejudicadas nesse cenário foram as mulheres.

Os governos eleitos em 2022 precisam recuperar as políticas públicas que já existiam para os quilombolas, restaurar seus espaços de participação social, ampliar a representação quilombola nos espaços de elaboração e implementação de políticas e elaborar novas políticas, não apenas focadas nos programas sociais. É preciso pensar políticas estruturais e estruturadoras para os quilombos, tais como aquelas voltadas para a regularização dos territórios e a abertura de linhas de crédito especificas para quilombolas. Além disso, é necessário garantir o acesso das mulheres quilombolas a políticas que respeitem suas especificidades e implementar a educação baseada nas diretrizes curriculares para a educação escolar quilombola (2012).

As professoras Omo Ayo Otunja (esq.) e Mako'yilè Gba Oya Nkan, da Educamores da CoMKola Epè Layiè - Danilo Verpa - 21.out.2022/Folhapress

Tudo isso passa por um Ministério da Igualdade Racial forte, capaz de influenciar tanto os demais ministérios quanto os estados e municípios para que promovam políticas voltadas para as comunidades quilombolas. Passa também por um Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar capaz de formular e de estimular os estados a formularem e implementarem políticas de desenvolvimento para os quilombolas; pela retomada da missão do Ministério da Educação (MEC) como órgão elaborador de políticas de educação para os quilombolas e indutor de sua adoção pelos estados, sobretudo na aplicação das diretrizes já mencionadas e abandonadas; pelo fortalecimento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), completamente sucateado e desvirtuado no governo passado.

Sem regularizar os territórios quilombolas, todas as políticas públicas ficarão no vazio. É preciso ainda recuperar a Fundação Cultural Palmares para que cumpra sua missão institucional. E, finalmente, o Ministério da Saúde precisa saber que existem cerca de 6.000 quilombos, em mais de 1.700 municípios, e inclui-los no pacto federativo.

Isso é combate à fome e às desigualdades. Não combateremos a fome e às desigualdades sem combater o racismo.

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