Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro
Descrição de chapéu

A fruta estranha

Amar para sempre pode ser reconhecer o que de bom cada pessoa trouxe

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Quando eu era adolescente, costumava correr na praia à noite. Ou voltava do trabalho andando pela praia. Além de economizar com a passagem, amava a sensação do vento no rosto e apreciar a imensidão.

Às vezes, só sentava no banquinho da praia para jogar minhas dores ao vento. Ali dei meu primeiro beijo, marquei encontros, sofri assédios. Sobretudo à noite, volta e meia aparecia um homem muito mais velho para me convencer de que era normal o modo com o qual me abordava. Demorei a ser olhada com amor.

Amei platonicamente desde garotos da escola até o Denzel Washington. “Sabia que você é linda?”, me disse uma vez um filho de fazendeiro muito mais velho quando eu passava férias em Piracicaba, na casa da minha avó. 

Ilustração
Linoca Souza/Folhapress

Eu tinha 16 anos e lembro de uma tia dizendo que eu deveria ficar lisonjeada. À época, minhas preocupações eram ler e ouvir música. Sempre fui a estranha. Eu queria amar, mas não entendia muito bem o que era. Ou eu era preterida ou objetificada —como não queria nem um nem outro, o mar, os passeios pela praia, a música e a literatura me protegeram. 

Entre garotos afoitos e homens mais velhos falastrões, com o tempo escolhi a solidão. Fui uma adolescente sozinha que gravava cassetes ouvindo programas de rádio da madrugada. Já que o amor me era negado, eu o fantasiava. Eu era a “fruta estranha” pendurada metaforicamente nas árvores frondosas da indiferença.

“Você costumava olhar as estrelas para se guiar no mundo, contudo, amor, você se perdeu.” Assim começa uma das músicas mais bonitas dos tempos atuais, da banda As Bahias e a Cozinha Mineira, que tem como vocalistas Raquel Virginia e Assucena Assucena. Apesar de triste, o clipe com a atriz Renata Carvalho é belíssimo.

Mostra uma travesti que se entrega ao amor, mas se vê enganada por um homem que não tem coragem de enfrentar as imposições da sociedade para amá-la porque também a considera uma fruta estranha.

Fiquei pensando nos homens que conheci, nas estrelas que contei, nas pessoas com falta de espontaneidade, ausência de profundidade emocional e na fuga das responsabilidades e das decisões justas que deveriam ser tomadas para a transcendência, mas que são eternamente adiadas. No quanto já fui a pessoa que esperou e perdoou adiamentos. 

Amar quem se é, e não uma bela imagem. 

Muita gente se esquece da Simone de Beauvoir romancista. “As Belas Imagens” é um de seus livros marcantes. 

Tenho em casa uma edição gasta, cujas páginas se soltam do livro se não as viro com extremo cuidado. 

Comprei em um sebo há vários anos, e não sei se ele foi publicado por alguma editora nos últimos anos. 
A trajetória de uma mulher que fala sobre a percepção de sua realidade como tendo sido criada para ser uma bela imagem nos leva a pessoas do nosso convívio, desnudando personagens que são construídos para serem um bom produto, adepto das aparências e das convenções sociais. 

As belas imagens são essencialistas, determinam um destino, ao passo que têm ojeriza a quem assume a sua existência. Como são produtos fabricados para atender a uma expectativa de aparência, acabam por se tornar reféns do público que as consome. Se a relação é de consumo de imagem, ela é baseada em compra, uso, descarte.

Quando entendi o peso do amor construído nas imagens e as consequências, sobretudo para a mulher, mudou o modo como entendi e escuto as canções de amor. 

“I Put a Spell on You” é sobre enfeitiçar a mim mesma e não um homem que não me quer. O verso “I am still in love with you”, da música “Harvest Moon”, pode ser a maturidade de admitir que se ama 
alguém mesmo com o fim, e não um desejo desesperado de prisão. Amar para sempre pode ser reconhecer o que de bom cada pessoa me trouxe, e não um calabouço. 

É doloroso ser a fruta estranha, como diz a canção “Strange Fruit”. Ela é ferida, violentada, linchada, pendurada em árvores, segregada. Billie Holiday cantando me fez entender o peso de ser a fruta que não se quer, em todos os sentidos.

Hoje, peço licença a Abel Meeropol, compositor da icônica canção, e gostaria de entender o estranho como metáfora. 

Ainda somos “a fruta que os corvos arrancam”, mas queria poder dizer a Billie Holiday, quem melhor a interpretou, que a estranheza num mundo de belas imagens é uma fresta de esperança de quem ainda olha as estrelas para se guiar no mundo, Raquel Virginia e Assucena.

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