Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro
Descrição de chapéu machismo

Negar o erótico como força vital é impor a mulheres papel de submissas

A pressão estética sobre os corpos femininos é uma questão urgente a ser questionada por todos

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Desde que me entendo por feminista, o debate sobre a objetificação dos corpos das mulheres é parte integrante das pesquisas de muitas pesquisadoras ativistas. Entender sob a perspectiva do feminismo negro ampliou a minha visão, sobretudo a partir dos estudos de Audre Lorde.

Em “Os Usos do Erótico: O Erótico como Poder”, Lorde faz a diferenciação entre o erótico e o pornográfico: o primeiro seria uma força vital, o segundo, algo automatizado e opressor. E essa negação do erótico como força vital tem a ver com pôr as mulheres num papel de submissão, uma vez que esse sentido foi esvaziado para ser confundido com o pornográfico, negando às mulheres a busca pela autonomia.

Mulher negra gorda em cima de uma grande concha que está numa superfície marítima. Ela faz uma pose parecida com a da musa da "O Nascimento de Vênus", de Sandro Botticelli
Ilustração de Aline Souza para coluna de Djamila Ribeiro, publicada em 30 de abril de 2021 na Folha de S.Paulo - Aline Souza

Como já escrevi nesta coluna, negar o erótico como força vital cumpre o objetivo de impor às mulheres um lugar de submissão, de mantê-las presas a amarras ideológicas. Suprimir o erótico em nome de algo sem sentimento seria uma das amarras que confinariam as mulheres ao lugar de objetos, e não sujeitos de suas histórias, fazedoras de caminhos de libertação.

É algo que vai além de uma questão de moralismo —como acusam muitas mulheres que criticam a pornografia.

Para Lorde, não se trata disso, mas de romper com uma existência mecanizada que incentiva a falta de sentimento e nega às mulheres poder para conhecer a plenitude. Pois negar o erótico seria como não ter consciência do próprio ser, nos relegando à superficialidade.

Mulher negra com cabelo crespo curto usa óculos de grau e faz discurso
Escritora e ativista Audre Lorde em foto sem data - Elsa Dorfman / wikimedia

Em um mundo no qual o corpo das mulheres virou mercadoria, o pensamento de Lorde se faz cada vez mais urgente. Na indústria da música, por exemplo, cada vez mais vemos cantoras sendo objetificadas como se fossem um produto a mais.

Lembro a história da cantora de jazz Sharon Jones. Apesar de muito talentosa, ela só conseguiu o reconhecimento após os 40 anos e ouviu de um executivo de uma grande gravadora que ela jamais faria sucesso por ser “escura e baixa demais”.

Os padrões racistas e sexistas impediram que Jones tivesse mais oportunidades, pois, para os burocratas da música, a cantora precisaria atender a padrões de consumo cada vez mais explícitos. Ora, se para cantar é necessário ter habilidades vocais e musicais, por que o corpo é posto como um obstáculo para o sucesso? Jones morreu aos 60 anos, fez sucesso dentro do circuito do jazz, mas muito aquém do que poderia ter sido.

A pressão estética sobre as mulheres precisa ser questionada. Do mesmo modo, vemos no pop americano cantoras de talento questionável, mas que fazem sucesso por atender a certos padrões. E é uma profusão de corpos seminus, hipersexualizados e naturalizados dessa forma.

Não penso que os indivíduos devam ser responsabilizados, mas toda uma estrutura por trás que impõe padrões que atendem a uma lógica cruel que objetifica os corpos femininos.

No inicio dos anos 2000 surgiu o fenômeno das “mulheres frutas” na mídia nacional, sendo a Mulher Melancia uma das mais conhecidas. Até o nome remetendo à fruta, algo comestível, é sugestivo.

Escrevi um artigo que apresentei em uma conferência internacional refletindo sobre o fato de que os corpos dessas mulheres seriam consumidos, deglutidos e depois expelidos quando não mais servissem aos interesses. E foi o que realmente aconteceu.

Com isso, de novo, não estou me referindo a essas mulheres, mas às condições que são negadas e que fazem com que certos lugares sejam impostos somente às mulheres. Ou já ouvimos falar no Homem Filé?

Minha questão aqui com o nu não é no sentido moral, ao contrário, mas no seu uso político. A mulher gorda, escura demais não é alçada a um lugar de popularidade e sucesso, o nu gordo, fora dos padrões excludentes, é ridicularizado, escanteado, mostrando que o nu feminino interessa se atende aos padrões masculinos de consumo. Não é qualquer mulher que será “aceita”.

Quando muitas mulheres questionam essas imposições, elas são postas como invejosas amarguradas, moralistas —mais uma tática para impedir a discussão séria.

Com as redes sociais, podemos ver o nu feminino objetificado nas mais diversas plataformas e vendido como empoderamento. Adolescentes cada vez mais adultizadas e incentivadas a valorizar sua aceitação baseada no corpo. A quem serve essa objetificação e quem verdadeiramente lucra com ela?

“O medo de que não vamos dar conta de crescer além de quaisquer distorções que possamos achar em nós mesmas é o que nos mantém dóceis, leais e obedientes, definidas pelo que vem de fora, e que nos leva a aceitar muitos aspectos da opressão que sofremos por sermos mulheres”, afirma Lorde em outro trecho.

Crescemos acreditando nessas distorções, torturando nossos corpos para que sejam aceitos, acreditando na rivalidade entre mulheres e disputando as migalhas do patriarcado racista.

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