Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Declaração de Bolsonaro sobre crianças refugiadas é evidente e grotesca

Os homens se sentem confortáveis para dizer absurdos sobre corpos de meninas

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Foi indignação o que senti quando tomei ciência de que o atual presidente sentiu ter pintado um clima entre ele e adolescentes de 14 anos de uma comunidade de São Sebastião, em Brasília.

Disse ele: "Parei a moto numa esquina, tirei o capacete e olhei umas menininhas. Três, quatro, bonitas, de 14, 15 anos, arrumadinhas, num sábado, numa comunidade. E vi que eram meio parecidas. Pintou um clima, voltei. ‘Posso entrar na tua casa?’. Entrei. Tinham umas 15, 20 meninas, sábado de manhã, se arrumando. Todas venezuelanas. E eu pergunto: meninas bonitinhas de 14, 15 anos se arrumando no sábado para quê? Ganhar a vida".

Reações foram fortes apontando como era inadequado um homem de 67 anos se expressar dessa forma, enfatizar que essas meninas eram "bonitas", "bonitinhas", que eram "meio parecidas", por ter presumido e insinuado que estavam ali para serem sexualmente exploradas. Enfim, um depoimento grotesco, principalmente vindo de um presidente da República. Mas o que chamou a atenção mesmo foi sua declaração "pintou um clima" e como isso o levou a voltar e entrar na casa onde elas estavam.

Na ilustração para o texto de hoje, três meninas aparecem de costas, andando abraçadas, elas usam vestidos e sandálias.
Ilustração de Aline Bispo para coluna de Djamila Ribeiro - Aline Bispo

Apesar de ser uma declaração bem evidente, a partir da repercussão veio a alegação de ser tudo um grande "mal-entendido". A atual primeira-dama, Michelle Bolsonaro, foi uma das pessoas que buscaram justificar a frase. Segundo ela, o atual presidente tem mania de falar "pintou um clima". Ele seria uma pessoa que fala isso a todo momento para as mais variadas circunstâncias.

Ocorre que um levantamento do jornal O Estado de S. Paulo mostra que, em 128 lives de Bolsonaro registradas pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo entre 2019 e 2022, não houve a expressão uma única vez.

E ainda veio a conhecimento público que o lugar citado por ele de modo algum se tratava de um espaço de exploração sexual infantil. O que estava acontecendo ali era uma ação social para meninas refugiadas.

Ou seja, tudo um grande absurdo, uma mentira do começo ao fim, com trechos bem problemáticos no meio do caminho. E, mesmo sabendo se tratar de uma personalidade que faz uso de declarações absurdas a todo momento, desta vez ele se superou.

Por exemplo, dizer que todas as meninas se parecem é uma arrogância particular típica do grupo social branco. Lembro-me de que me diziam que eu era parecida com minhas primas, mesmo nós sendo completamente diferentes. Era só porque éramos negras. Isso vale para pessoas descendentes de famílias japonesas, chinesas, ou para o que acontece com os indígenas. O racismo busca homogeneizar grupos inteiros. "É tudo igual", diz o colonizador. "Só nós temos a prerrogativa da diferença."

Mas, sobretudo, acredito que o episódio nos mostra como abuso infantil e exploração sexual de crianças e adolescentes não são temas que podem ser tratados com leviandade. São inúmeras crianças e adolescentes estupradas anualmente no Brasil, fato este que trato reiteradamente nesta Folha e que penso que deveria ter cobertura de imprensa muito maior, bem como ser enfrentado por políticas públicas fortes, perenes e em todo o território nacional. É um gravíssimo problema social e fonte de muitos outros que atingem toda a população, sobretudo as meninas e mulheres.

O fato de trazermos à luz a inadequação de parte da fala de Bolsonaro quando se refere a adolescentes como "bonitas" é importante para desnaturalizarmos a sexualização de crianças e adolescentes. Quando minha filha tinha apenas 13 anos, lembro-me de um comentário infeliz que ouvi: "Ela está um mulherão!". E eu respondi imediatamente: "Ela é apenas uma criança".

Os homens se sentem muito confortáveis para olhar, comentar e dizer coisas absurdas sobre os corpos de meninas. Eu me lembro que os olhares maliciosos de homens começaram quando eu tinha 11, 12 anos. Quando fui professora de escola pública, arrumava briga com professores que diziam coisas como "essas meninas de 14 anos sabem muito bem o que querem". E eu os repreendia por olharem para elas. Há sempre uma tentativa de desresponsabilizar homens adultos por suas atitudes abusivas.

Em um país que tem em suas bases o estupro de mulheres e meninas —lembremos que essa realidade decorre desde a colonização—, prática essa que foi romantizada, inclusive por intelectuais que defendiam a democracia racial, há muito a ser feito. E não podemos mais admitir que um lugar de tanta responsabilidade como a Presidência da República seja também um lugar de comportamentos e declarações tão rebaixados.

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