Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro
Descrição de chapéu machismo feminicídio

Quão iludido você está sobre a condição da mulher no Brasil?

O homem me disse que deveríamos celebrar, pois na Arábia a situação é infinitamente pior

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Estava dia desses saboreando um café da manhã num lugar próximo a minha casa. Estava envolta em meus próprios pensamentos, em um dia tranquilo, quando pretendia apreciar a linda manhã que fazia em São Paulo, e refletia sobre um belo documentário que havia visto com minha filha Thulane sobre Tina Turner na noite anterior.

Tina recomeçou do zero aos 40 anos, após divorciar-se de Ike, um casamento marcado por violência doméstica e apagamento. Aos 50, com a força que tirava qualquer um do chão, Tina fez uma das mais emblemáticas turnês da história da música, cujo recorde de público no Maracanã segue intacto.

Enquanto pensava sobre as lições que Tina me ensinava, um homem me reconheceu e me abordou, engatando uma conversa não solicitada. Sim, eu o cumprimentei de volta, mas em momento algum demonstrei que gostaria de entrar em uma conversa. Contudo ele achava suas considerações irresistíveis e, mesmo diante de minha cara, que se foi fechando à medida que percebi que ele ia expor o que pensava sobre a condição da mulher no Brasil, ele realmente falou por minutos intermináveis sobre o avanço dos direitos das mulheres no Brasil.

Na ilustração, de fundo amarelo, um homem está falando, enquanto gesticula e acima de si está um balão de fala maior que ele. O balão de fala é verde e o homem é branco, tem cabelos ruivos e usa uma camiseta branca.
Ilustração de Aline Bispo para a coluna de Djamila Ribeiro de 9.mar.23 - Aline Bispo

Naquele breve infinito monólogo, ele me disse como nós, mulheres do país, deveríamos celebrar nossa situação, a qual era infinitamente melhor que aquela experimentada "na Arábia", onde elas tinham que cobrir o corpo. Despejou mais meia dúzia de preconceitos para fortalecer seu argumento de que mulheres no Brasil estão em uma situação da qual não podem reclamar. Em algum momento de breve lucidez, aquele homem percebeu meu olhar de "estou tomando um café, me deixe em paz" e finalizou sua palestra, o que me foi um alívio.

Uma sensação gostosa me tomou, pois sabia que teria esta coluna para sublimar aquele momento indelicado e, de quebra, poderia falar brevemente sobre essa irritante postura de pessoas neste país que acham que podem apontar o dedo para mulheres de outros países numa posição de superioridade moral.

É claro que o movimento feminista brasileiro coleciona vitórias e avanços ao longo da história, bem como é necessário destacar o trabalho de resistência de feministas que seguem uma jornada de emancipação, tanto no país como em demais regiões do mundo.

Entretanto, falando de Brasil, o patriarcado segue produzindo catástrofes. Um feminicídio a cada sete horas, falta de proteção legal contra discursos de ódio, alienação parental, equipamentos públicos de proteção à mulher e crianças desmontados, estupros a cada 10 minutos de meninas e mulheres. Um país no pódio de exploração sexual de crianças, de tráfico de mulheres, enfim um país de práticas antifeministas. Que superioridade moral o Brasil tem para falar de qualquer outro?

Lembro-me dos estudos sobre o racismo no Brasil, nos quais o pensamento de Kabengele Munanga foram fundamentais para as reflexões do "racismo à brasileira". Munanga afirma que o racismo à brasileira não é melhor nem pior, mas tem características próprias e uma de suas principais é a negação do próprio racismo. Pessoas negras cansaram de ouvir odes à "democracia racial" no Brasil e uma comparação malfeita de que racismo mesmo ocorre onde houve segregação institucionalizada: "Ruim mesmo é nos Estados Unidos!", já disseram tantos.

Ao substituirmos Estados Unidos por Arábia Saudita, exemplo sugerido pelo homem na padaria, fazemos um paralelo entre raça e gênero. Sistemas de dominação que oprimem grupos sociais estão adaptados às condições históricas do lugar, mas de nenhuma forma um é melhor que o outro; aliás, para um grupo social no qual uma mulher morre a cada sete horas chega a ser ridícula uma proposição dessa natureza. São sistemas diferentes, com consequências diferentes. Temos que ter cuidado no olhar sobre o outro, principalmente se esse olhar se propõe superior.

No Brasil, mulheres são bombardeadas por imagens e mensagens de que devem ser sexualizadas e seguir um determinado padrão estético e há uma cultura de objetificação dos corpos femininos. Em um lugar de histórico turismo sexual, devemos nos questionar o quanto essas mensagens visam a manutenção do corpo da mulher para consumo. Trata-se, certamente, de uma opressão de características distintas, mas está bem longe de deixar de ser uma imposição patriarcal.

Em vez de prosseguir aquela conversa indesejada, coloco essas notas para reflexão: quão iludido você está sobre a condição da mulher no Brasil?

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